A difícil arte da tradução, a lúbrica facilidade da presunção, um texto instigando noutro vernáculo e o impulso de entendê-lo neste que compreendo melhor: os ingredientes de cuja combinação destilaram-se as linhas mais abaixo.
Nada obstante os quase duzentos anos de nascido seu autor, desconcertam pela insistente atualidade, tanto que o inculpam de germinar o redundante existencialismo. Alguns propósitos em aparência o obstinaram, ao menos em certos escritos, como a vertigem da alteridade - artifício visando ao distanciamento esperado naqueles que praticam a ciência, mas empregado com a veemência de quem, por sinceridade, não pôde debruçá-la senão sobre si mesmo - e os heterônimos multiplicando-se ao passo que constatava seus desdobramentos próprios, por cujo intermédio procurava seu espírito amoldar-se às extravagâncias morais daquele tempo.
Em vista disto mesclou em vários de seus trabalhos ficção e filosofia, dispondo as personagens como que num labirinto. Parecia querer tornar o conceito à condição originária, mítica, na qual possuiria a concretude do sentimento. Em Kierkegaard raciocina a comoção, enternece a lógica. E a fé provoca, faz tremer...
Temeu e condenou o fracionamento de seu trabalho, deste em particular, de título insólito, "Ou, ou", cujas partes aqui se lançam no limite do acaso. Mas foi capaz de reconhecer-se como origem e estímulo desse mesmo risco, dado o seu pendor quase irresistível para o aforismo.
A inquieta fraseologia intriga e encanta pelo emprego dos recursos extremos da gramática tendo por intuito evidente fazer cantar a dedução. Utilizaram-se duas versões em inglês, a de David e Lillian Swenson, revisada por Howard A. Johnson, e a de Alastair Hannay.
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"O que é um poeta? Um infeliz cujo coração abriga dor profunda, mas cujos lábios são capazes de fazer dos gritos e gemidos que por ali passam música arrebatadora. Sua sorte é como a das infelizes vítimas do tirano Faláris, encerradas em touro de latão, lentamente torturadas por fogo constante; seus gritos atingiriam jamais os ouvidos do tirano, nem terror lhe causariam no coração; soariam, quando escutados, qual doce música. E o povo rodeia o poeta dizendo-lhe: ’Canta para nós outra vez’ - o mesmo é dizer-lhe: ’Possam novos tormentos afligir teu espírito, mas que continuem teus lábios como dantes; pois teus gritos somente nos inquietariam, mas a música, ora, a música é deliciosa’. E vêm adiante os críticos, dizendo, ’Perfeito - como tem de ser, segundo as leis da estética’. Agora, entenda-se que o crítico difere do poeta por um fio; falta-lhe tão-só a angústia no coração e música nos lábios. Eu lhes digo: preferível é guardar porcos que me entendam a ser poeta incompreendido.
"... pois antevejo as inquietações e elas teimam em ficar atrás.
"Tenho coragem, acredito, de duvidar de tudo; tenho coragem, creio, para lutar contra tudo; mas não tenho a coragem de nada saber; nem a coragem de ter - de possuir - nada. Lamenta-se que seja o mundo assim prosaico, que não seja a vida como num romance, no qual as oportunidades são sempre favoráveis. Eu lamento não ser a vida um romance com pais desalmados, tritões e gnomos contra que lutar e princesas para libertar. O que são todos esses inimigos comparados às pálidas, exangues e tenazes formas noturnas contra as quais me bato e a que dou vida e substância?
"O que pressagia? O que trará o futuro? Eu não sei, não tenho pressentimento. Quando se lança de algum ponto fixo, segundo sua natureza, vê a aranha diante de si sempre e apenas o espaço vazio, onde não encontra apoio, por mais que se estique. Assim é comigo: tenho sempre à frente o espaço vazio, indo adiante em virtude da consistência que tenho detrás. A vida tem as pernas pr’o ar, é terrível, intolerável.
"Minha visão da vida carece de todo o sentido. Suponho que um espírito mau me pôs sobre o nariz um par de óculos, uma de cujas lentes magnifica tremendamente tudo, enquanto a outra tem poder equivalente de tudo encolher.
"De todos os ridículos, não há maior, para mim, do que o do ocupado homem de negócios, pronto a cear, pronto a trabalhar. Tanto que, quando vejo pousar uma mosca, num momento crucial, sobre as ventas de um homem de negócios, ou quando o vejo respingado de lama à precipitada passagem dum coche, ou quando bem à sua frente levanta-se a ponte, ou quando cai do teto uma telha, matando-o, rio com vontade. O que faz rir? O que realizam esses apressados? Não são eles como as donas de casa que, desorientadas com seu lar em chamas, salvam os atiçadores? O que mais levam eles do grande incêndio da vida?
"Perguntem-me o que lhes aprouver, mas não me peçam razões. A uma moça perdoa-se a incapacidade de fornecê-las, pois vivem, como se diz, com os próprios sentimentos. Comigo é diferente. Tenho, em geral, muitas e com freqüência mutuamente contraditórias, de modo que por tanto me é impossível oferecer razões. Algo de errado parece haver com causa e efeito, que não se combinam com acerto. Causas tremendas e poderosas por vezes produzem pequenos e irrisórios efeitos, senão nenhum; enquanto ocorre de uma ligeira causa menor resultar em efeito colossal.
"Ninguém volta dos mortos, ninguém jamais veio ao mundo sem chorar; a ninguém se pergunta quando na vida deseja entrar nem quando dela quer sair. "O tempo flui, a vida é uma corrente, diz a gente, e assim por diante. Eu não vejo como. O tempo é imóvel e eu com ele. Todos os meus planos se lançam de volta sobre mim; quando cuspo é em minha própria cara. "Cada qual deve ser um mistério, não só para os outros, mas para si. Estudo-me; quando me canso, á guisa de passatempo acendo um charuto e penso: o Senhor sabe apenas o que supõe ou o que faria de mim.
"Divido o meu tempo assim: uma metade passo dormindo e a outra, sonhando. Nunca sonho enquanto durmo; seria uma pena, pois o sono é o exercício maior do gênio.
"A natureza reconhece a dignidade humana, pois quando se quer manter os pássaros distante das árvores, monta-se algo parecido com um homem, e mesmo essa pouca semelhança, caso do espantalho, é bastante para inspirar aos pássaros respeito. "A melhor prova da miséria da existência é a derivada da contemplação de suas glórias.
"Os homens, em maioria, perseguem o prazer com tal azáfama que logo lhe estão adiante. Guardam-no como à princesa capturada o anão em seu castelo. Um dia, tira uma pestana. Quando acorda, depois de hora, foi-se a princesa. Rápido, suas botas de sete léguas calça e num só passo a deixa para trás."
Em Kierkegaard - Diapsalmata
"Em sendo contrário ao espírito da Irmandade das Vidas Sepultas (symparanekronomenoi) produzir coerência intrínseca ou grandes conjuntos em sua obra, em não sendo nosso propósito erigir uma Babel sobre a qual pode Deus, em sua justeza, descer e lançar destruição, já que, cônscios de ser tal confusão de línguas ocorrência justa, reconhecemos o fragmentário como característico dos que investigam sua verdade e entendemos ser precisamente isto o que a distingue da coerência infinita na Natureza, consistindo a riqueza do indivíduo precisamente em seu poder de fragmentária extravagância, sendo o êxtase do produzir também o do utilizar, não a laboriosa e meticulosa execução, nem a duradoura apreensão do executado, mas a produção e o desfrute dessa luminosa impermanência que para o produtor compreende algo mais do que o esforço completo, visto ser a aparência da Idéia, e que para o receptor, igualmente, contém um excedente, constatando que tal fulguração desperta sua produtividade própria - em vista de tanto ser contrário ao pendor de nossa irmandade (e desde que, de fato, mesmo o período que se vem lendo bem poderia ser tomado por ataque desmobilizador ao insinuante estilo que a idéia intumesce sem atravessar, um estilo a que se confere em nossa irmandade status oficial), então, enfatizando o fato de sequer poder chamar-se de rebelde a minha conduta, em vista do quão frouxa é a consolidação deste período, cujas cláusulas intermediárias se protraem de maneira suficientemente aforística e arbitrária, devo meramente ressaltar que meu estilo ensaiou parecer o que não é - revolucionário.
"Nossa sociedade necessita renovar-se, renascer, quando se reúne, tendo por fim poder sua atividade interna refazer-se com uma nova descrição de sua produtividade. Descrevamos nosso propósito como empenho em buscas fragmentárias ou na arte de redigir papéis póstumos. Uma obra poética inteiramente acabada não tem relação com a personalidade poética; no caso de escritos póstumos, em sendo inacabados, desordenados, sente-se necessidade de romancear a personalidade. Papéis póstumos são como ruínas; e que lugar assombrado seria mais natural para os sepultados? A arte, então, tem de produzir artisticamente o mesmo efeito, a mesma aparência de descuido e de acidente, o mesmo vôo anacolútico do pensamento; a arte consiste em agradar sem jamais tornar-se de fato presente, de modo que sempre tem algo de passado em si, é presente no passado. Isto já se expressou com o termo ’póstumo’. Tudo quanto o poeta produz, num certo sentido, é póstumo; mas nunca poderia chamar-se de póstuma uma obra acabada, nada obstante possua a qualidade acidental de não ter sido poublicada em vida do poeta. Admito também ser esta a verdadeira característica de toda produção humana como a apreendemos, que é herança, pois ao homem não se permite viver eternamente sob as vistas dos deuses. Uma herança, por conseguinte, é o que chamarei de efeitos produzidos entre nós, uma herança artística; negligência, indolência, eis como chamarei o gênio que apreciamos; vis inertiae, a lei natural que cultuamos. Com esta explanação compactuo com nossos sagrados costumes e leis."
Em Kierkegaard - O antigo mote trágico e seu reflexo no moderno
Rio, 30 de setembro de 2008Waldemar M. Reis
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