sábado, janeiro 08, 2011

Livre é você. Sou apenas justo, embora incompreendido.


A um amigo óbvio e 'livre' (ou seria apenas 'liberal'?).

Liberdade é a ideia resultante da constatação do sujeito, a despeito de sua capacidade de antever, de a ação do outro ter sempre algo de imprevisível. A si mesmo o sujeito não pode com honestidade considerar livre. O mundo lhe aparece como o coibidor por excelência, diante do qual tudo quanto realiza tem de justificar-se, tem de fazer-se de maneira precisa, consequente, ou arrisca frustrar-se. O justo não pode ser livre como o outro, cujas atitudes é raro lhe parecerem por inteiro justificáveis. Amiúde a ação alheia só lhe é passível de alguma compreensão - de alguma justificação - muito depois de ocorrida, quando então pode ele, o sujeito, o justo, concluir não haver o outro gozado de tanta liberdade quanto lhe atribuiu quando não lhe compreendia o por que do ato. Mas como uma mesma justificativa nem sempre é plenamente aplicável a toda circunstância ulterior, pode advir ao sujeito a constatação de que não previu uma ação subsequente do outro e, por conseguinte, que este é livre na ocasião, ainda que mais tarde venha justificar o ocorrido com o mesmo com que justificou anterirormente outro.

O sujeito é sempre justo. Só reconhece o contrário quando lhe manifestam admiração, ou seja, quando outrem, que sujeito também é, dá mostras de não lhe haver previsto os atos, de não os haver justificado. Só assim reconhece que ele, sujeito, ao menos desse modo é livre também: quando lhe mostram que não é tão justo quanto de si e para si acreditava ser. Mas enquanto não dá com o reflexo do seu ato no outro continua o sujeito para si mesmo sendo apenas justo, incessantemente limitado. Os atos próprios lhe aparecem todos como consequentes: conhece muito bem - ou assim acredita - o por que de cada qual. Mais ainda: quase sempre está tão certo de ser justo que lhe custa admitir ou entender que assim não pareça aos olhos do mundo. É por isso que recalcitra, a despeito de advertido, apenas para permanecer incompreendido, embora a insistência nesse ato lhe possibilite também convencer os demais. Quando há convencimento, sua atitude então não é mais encarada como livre e sim como justificada (ou justificável), podendo ser adotada por todos quanto querem somente permanecer justos. Mas lhe é possível também submeter quem não se convenceu: quando isto se dá, sua ação, a despeito de - ou precisamente por - permanecer incompreendida, pode tornar-se, mais do que reprovável, modelar e, por conseguinte, cobiçável por quem almeje ser - ou parecer - livre.

A associação de liberdade com ignorância não é recente. A argumentação acima apenas a apresenta de outro viés, talvez menos intuitivo do que os vieses clássicos, e faz uso pródigo das ambiguidades que acarreta. Trata-se em princípio de longa e livre paráfrase da sentença de abertura de ’Discurso do Método’, na qual a expressão ’bom senso’ foi substituída pelo termo ’justeza’, em boa medida sinônimo da anterior, embora aqui apareça num contexto diferente daquele sobre que Descartes escreveu (o da metodologia da ciência) e que o especialista no assunto não hesitaria em designar como ética. O ponto polêmico do texto é a oposição flagrante dos termos ’livre’ e ’justo’, conotando o primeiro, evidentemente, transgressão e o segundo, acatamento de alguma regra ou lei. A um moderno liberal isto ressona inequívoca provocação; não o censuremos por haver abandonado a leitura antes do presente parágrafo. Afinal de contas o sentido de ’transgredir’ fixou-se nos últimos tempos numa conotação negativa, a de infringência de algo a ser cumprido, quando em princípio denota apenas ’ultrapassagem’. Nesse contexto, portanto, a transgressão do indivíduo livre esboçada acima não acarreta necessariamente o rompimento de algum trato, lei ou regra, mas um ir além disso, nada obstante tal possa ou não dar-se de maneira procedente: é possível ter-se em conta princípio maior, mais abrangente e, por conseguinte, melhor, ao se ultrapassar um outro, não tendo sido outra a forja de heróis em cujos tempos foram tidos por vilões. Em 'Temor e Tremor' Kierkegaard tratou de caso extremo dessa espécie, o de Abraão desincumbindo-se do que lhe encomendara Deus, a morte de Isaac: em virtude de cumprir o comando divino estaria o patriarca isento de responder aos preceitos da moral - ou da ética - humanamente concebível? - pergunta-se o filósofo.

Em suma, para o sujeito o outro estaria, sim, transgredindo alguma regra, mas não por necessidade infringindo-a. É possível que num primeiro momento fosse o ato tido por infringência, mas, uma vez justificado - compreendido - pelo sujeito, logo passa a transgressão no melhor dos sentidos. É também possível que o sujeito não justifique o ato alheio, o que, na circunstância, o autoriza a qualificá-lo como mera infração. Em ambos os casos é do sujeito a ignorância, ao menos a inicial, até que entenda ele o ato alheio, que o veja como justo, ou quando se rende por fim à evidência de não ser capaz de justificá-lo. No caso último a ignorância é também do outro: ao menos enquanto agia não se deu conta de tão-só infringir - e não de transgredir. Esse ignorar tem algo de perverso: observe-se que enquanto ignora como agir melhor, o sujeito (ou o 'outro') ignora que ignora. E ignora que ignora por acreditar que sabe o que faz: uma completa obscuridade, estado a que se está permanentemente sujeito e detectável quase sempre de forma tardia. Mas tal só se entende por intermédio de Aristóteles, para quem o fim último (ele chamou de ’causa final’) de seja o que for é o bem - ou um bem. Como é evidente, trata-se de sorte de axioma, ou seja, de afirmação não passível de provar-se por intermédio de artifícios da lógica - ou do discurso, como se mostra, por exemplo, que ’Sócrates é mortal’, desde que se admita por premissa que Sócrates é homem e que todo homem é mortal. Descartes disse o mesmo do ’penso, logo existo’: assim como a asserção aristotélica esta seria passível de somente experimentação. Em ambos os casos é mister gozar o experimentador de mínima sinceridade, ou se condenará a um insustentável delírio cético (você consegue, por acaso, convencer-se de que não existe?), ou à ilusão de ser capaz de conceber e empreender algum mal, em suma, tornar-se-á louco ou presunçoso caso não leve a sério as experiências sugeridas pelos dois filósofos.

Assim, a despeito de crermos no contrário, ao acatarmos o ’axioma’ de Aristóteles admitimos de enfiada nossa incapacidade de produzir o mal. E de fato o produzimos, mas exclusivamente por ignorância (a única justificativa plausível para tamanho desatino), como se fora sorte de bem: no fim de todas as nossas intenções há sempre algo de bom, ainda que, tornadas em atos, consumem algum tipo de mal. É evidente, o tal bem almejado, ainda que mínimo, o é sempre referido a um sujeito ou a algo que ele tem por parte de si, pouco importa se em pessoa não é ele o contemplado, como é o caso das guerras, em que se mata e morre por bem de um conceito diáfano como o de ’pátria’, do qual o indivíduo está convicto de ser parte, ou seja, de haver sorte de identidade ou comunhão entre a pátria e ele mesmo. Há uma lógica e mesmo uma 'mecânica' de bem e mal, passíveis, inclusive e como quaisquer outras lógicas e mecânicas, de algebrização, por cujo intermédio se demonstra que o segundo é sempre espécie de subproduto da canhestra obtenção do primeiro. Isto, entretanto, é matéria para outra oportunidade, bastando de momento entender-se que tal só ocorre por intercessão da ignorância: soubesse o sujeito como efetivar o bem concebido, isto é, sem daí surgir mal nenhum, é seguro que o faria: por pior que a alguém pareça o ato de outrem, este foi de fato o melhor que conseguiu realizar - é claro, tomando-se o partido de quem o realizou. E, como se pontuou acima, não raro o sujeito ignora que ignora a maneira de obter um bem maior. Um ponto imprescindível: é suposto concordarmos, para a compreensão do quanto aqui se disse e se dirá, em que bem e mal de fato inexistem no mundo senão como juízos, digo, senão como nota aposta pelo sujeito a tudo quanto lhe é perceptível - aí incluído o pensamento. O mundo é composto de fatos - como o queria Wittgenstein - em si próprios destituídos de bondade ou maldade senão quando presenciados por um sujeito, uma consciência. Há razão para que se os considere como o fazemos, embora o discuti-la tenha de ter lugar noutra instância, por bem da brevidade. De momento é bastante admitirmos existir bem e mal, sim, mas apenas enquanto juízos, sem que tal torne inviável o que se diz aqui.

Descartes dá sua explicação do fenômeno: admite não sermos capazes de saber tudo (admite a ignorância, portanto), mas culpa a vontade, que passaria à frente do entendimento no ato de conhecer e - até por pirraça, é de imaginar - escolheria o pior quando o sujeito é instado à ação. Em sua divisão desmesurada do espírito humano o francês concebe uma vontade desgovernada, embora divina, perfeita, como o é o próprio entendimento, para pôr a salvo de errar a ’clareza e a distinção’ dele, entendimento, razão (o que em princípio soa como justo). Nesse passo põe de ponta-cabeça a idéia de liberdade afirmando ser seu grau mais baixo a indecisão (ou a dúvida, esta que ele usou como ’método’, segundo afirmação própria, para o achamento das verdades de sua metafísica) e o mais alto, a escolha (ainda que a incorreta?), quando se é, então, "ainda mais livre". Em certo sentido tinha razão com respeito á indecisão: caso se aceite o ’axioma’ aristotélico, ignorante seria quem, ainda que não a efetive, crê ter escolha, uma vez que, seja lá como decida realizar não importa o quê, isto a realizar-se será invariavelmente um bem e um bem cuja amplitude ou cujos possíveis corolários, maléficos ou não tão bons, dizem respeito a o quão conhecedor do mundo - o quão sábio, portanto - o seu autor é. E quem crê ter escolhas, ao menos na acepção comum de liberdade, se diz livre, no caso, para escolher, é evidente. Em suma, livre seria quem vê diante de si miríade de opções a serem indiferentemente pinçadas: livre por ignorar qual delas é a adequada à circunstância, na qual seria, enfim, a única  de fato a merecer realizar-se visando a obtenção de um bem maior - ou um bem reconhecível por ao menos outro indivíduo além dele próprio. Observa-se que aqui Descartes entendeu a liberdade em sentido um tanto diverso do que a entende o senso comum: a indecisão - ou a iminência da escolha - seria para ele o mais baixo grau de liberdade, enquanto para o senso comum isto seja talvez o único. Mas ao afirmar que se é "ainda mais livre" quando é realizada a escolha, em que sentido seria possível entendê-lo, se algum há? Imagino que no único possível, o de estar-se livre do cumprimento daquele dever (invariavelmente o dever de produzir algo de bom), se - e somente se - este de fato foi cumprido, embora seja incerto afirmar, pelas indicações que deixou, que Descartes tivesse em mente isso.

Neste ponto o ’sei que não sei’ socrático ganha sentido intrigante: estaria o sábio a justificar suas falhas, em particular as futuras, ou somente a demonstrar a impossibilidade de se praticar o bem perfeito? Em ambos os casos a resposta pode ser afirmativa, o que tornaria a filosofia exclusivamente em sorte de ato de contrição, não fora a orientação inata para o bem do indivíduo, axiomática, a fazer dela, filosofia, também formulário de estratégias para buscar o bem com a menor interferência possível do subproduto mal. Além disso é pouco mais o que afirma o sábio saber, como, por exemplo, que não há escolha, uma vez que, em se supondo que é de fato sábio,  só se tem sentidos para o bom e, caso houvesse no mundo alternativa a este, sequer a levaria em conta, sequer a perceberia; sabe também ser cambiante sua percepção do bem, tanto maior quanto for o seu conhecimento do mundo; e sabe que é livre apenas quando desincumbido do dever, coisa que, a rigor, jamais se dá, pois o desencargo de um é de pronto substituído pela solicitação de cumprimento de dever subsequente e, assim, para todo o sempre enquanto viver.

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