domingo, janeiro 09, 2011

Experimentando a causa final

a Clarão e Tuninho
Há quem prove - ou pense provar - que o tempo não existe: trata-se de apenas uma ideia sem correspondente exato na 'realidade'.Sim, acato – e, engraçado, fala-se assim como se as ideias fossem irreais. Mas não vamos aqui discutir tanto esse ponto. Peço somente que se conceda que, seja o tempo o que for para lá das ideias, é com o auxílio da ideia que se faz dele que o mundo ganha algum sentido para nós. De fato envelhecemos depois de termos sido jovens, fomos jovens depois de havermos nascido e bem depois de sequer termos sido seja o que fomos quando nossos pais não se conheciam. Tal conjunto de eventos, seja ou não 'coisa real', com ele lidamos com o auxílio da ideia incerta de tempo.

 É preciso, pois, que algo dure, para nos ser possível afirmar que isto existe. Nossos corpos, por exemplo, duram, embora mudem sem pausa, desde quando somos concebidos, até depois da morte, quando continuam seus processos de mudança até se dissiparem, assumindo então forma da qual não nos permitimos mais afirmar que foram ou são aqueles corpos. Mas nós mesmos, ou seja, esses conjuntos ainda pouco compreendidos de corpos e consciências, se é impreciso dizer que começamos a existir em úteros, há generalizada concordância em torno à afirmação de que nos finamos com a morte, apesar de os corpos com que nos compúnhamos permanecerem por mais algum tempo existindo. Cessar de durar é, por conseguinte, deixar de existir, seja lá como isto se entenda por intermédio do abstruso conceito de tempo.

Assim, as coisas têm de durar, ou não existem. No nosso caso é possível acrescentar que também queremos durar – exceção feita, naturalmente, a quem da vida se desencantou, embora até se desencantar tenha-se por certo alinhado conosco, os demais, que têm de e querem durar. Parece ser parte da natureza disto que chamamos de 'estar vivo' essa obstinação em durar. No meu entender, muito naturalmente. Pois, como já concordamos, se não dura, não existe, com a diferença de que o ser vivo existe por si e também por querer, por fazer por onde.

Ah, claro, a ciência e - principalmente - a filosofia já provaram - ou acreditaram provar - que os indivíduos são outra ficção. Sem dúvida, mas este é mais um ponto por que teremos de passar sem o levarmos muito além. Infelizmente somos também constrangidos por algo na nossa natureza a ver o mundo como amontoado de coisas distintas umas das outras, embora por vezes sejamos capazes também de vê-las todas como uma coisa só – ou melhor, somos obrigados a 'engolir' isso em virtude de tudo diante dos nossos narizes transformar-se em qualquer outra coisa com o passar do misterioso tempo, em virtude, enfim, da impressão de que a rigor há algo de fundamental na composição de tudo, algo em que tudo com o tempo se desfaz. Enfim, temos aqui de admitir, sem maiores considerações, que há para nós o mundo como um todo, bem como há as coisas no mundo, seja qual for o motivo de tal ocorrer conosco.

 Então: indivíduos quaisquer existem para nós em virtude de durarem e, no nosso caso, além de termos de durar, também o queremos. E existir, ao menos para os que não se enfadaram da existência, é em princípio algo que sem pestanejar qualificamos de bom. Sim, às vezes não se quer matar-se e, por outro lado, não parece preciso afirmar que existir é bom. Nesse caso trata-se de quem está a transpor a linha dividindo quem gosta e quem desgosta de existir. Nada obstante, enquanto do outro lado não estiver, estará dizendo nas entrelinhas que reconhece haver na vida ao menos o bastante para tolerá-la ou, ainda, que há o suficiente de bem no viver para impedi-lo de estourar os miolos imediatamente.

 Tanto se disse para mostrar que a vida, ao menos para quem não se deprimiu, é um bem. Mas ela não é de fato nada: é a vida, somente. Prova disso é que pode ser desprezada por um sem número de viventes. E embora seja tão-só viver, quem dela se agrada o confessa afixando-lhe um rótulo, o rótulo de bem. E, claro, de tudo faz para permanecer vivendo. Quanto aos outros, os descontentes, não se pense entretanto que discordam por inteiro dos demais: não! Só que para eles, indivíduos em aparência mais exigentes, a vida tem de ser efetivamente boa. Ora, não apenas para eles: para seja qual for o vivente, a vida só é bem se for boa. Aqui entra em cena outro ponto indiscutível, embora tema de incontáveis discussões: a boa vida é questão de tolerância. Uma dor, por exemplo, uma lancinante, no caso: há quem a suporte indefinidamente e quem sequer tolere imaginá-la sem pensar em desaparecer. (Curioso é ter de admitir que quem prefere a morte a um viver menos – ou nada – prazeroso deve ter alguma noção de como é inexistir e essa noção lhe indica tratar-se de coisa melhor do que o existir – pois imaginamos que naturalmente declinaria da escolha caso supusesse tratar-se de algo pior.)

 Enfim, concordamos em que em si o viver não é lá muita coisa, só sendo um bem quando é bom (ai!, geme o lógico – e desta vez o ouvimos), e em que, mesmo em se desprezando a vida, isto se faz na suposição de que a outra condição, a de não viver, é um bem maior - ou simplesmente um bem. Resultado: parece-nos que, até aqui, pouco importa a forma sob a qual ele nos apareça, estamos constantemente no encalço do bem ou, concedo, se não do BEM ele mesmo (espécie de Papai Noel da filosofia), ao menos de algum bem, digo, de parte desse bem de gorro e botas vermelhas. E não se trata só de ir atrás do dito cujo, mas de fazê-lo aparecer, ou mais, trata-se até de criá-lo, de trazê-lo à existência, sintoma este do já menciondo querer viver.

Um sujeito faz sinal na penumbra e indica não concordar. Parece meio sem jeito, não quer mostrar-se, mas como aqui garantimos a livre expressão, aos poucos vai ficar à vontade para expor o seu ponto: ah, sim, uma ressalva: já tentou de tudo para mudar, mas tem de admitir que continua apreciando - o quê? Ah, claro: o sofrimento alheio. Aprecia, então, o sofrimento alheio e - o que mais? Sim, está seguro de produzir o mal. Senhores, senhores, por favor, não riam; é evidente que encontraram a chave: naturalmente a encontraram, ou não teríamos concordado tanto até aqui. É que o amigo lá de trás não percebeu como formulou a questão: disse gostar de fazer o mal. E, claro, não se gosta senão do que é bom. O o cerne do problema, se os senhores bem observaram, está no gostar do que para um outro é mau. Este, entretanto, é outro assunto por que teremos de passar sem virá-lo do avesso: deve por certo haver um viés especial por cujo intermédio nos é possível entender este e semelhantes casos, mas temos de deixar para outra ocasião o encontrá-lo. Então, em miúdos se tem, enfim: seja qual for a causa ou o motor de seu gosto, gosta disso, digo, isso lhe é um bem.

Um outro indivíduo toma coragem e se levanta: não nos alvorocemos, amigos, seu caso pode ser diferente. Como? Certo: detesta o mal – como a maioria de nós afirma detestar – e, no entanto, por mais que busque para todos o melhor, acaba sempre restando de suas ações algo condenável por alguém. É, o inferno parece mesmo estar cheio das melhores intenções. Vejamos: em princípio somos levados a crer que de fato todos – sem exceção – gostamos de algo, ou seja, procuramos sempre por ou nos esforçamos para realizar algo bom, um bem; entretanto há quem goste de fazer com os demais o que estes – e mesmo ele próprio – detestam (sendo preciso reconhecer que há também quem goste disto para si próprio!) e há quem o faça sem querer, crendo produzir um bem comum. O amigo aqui não parece distinto da maioria de nós: há afinal quem aqui se atreva a lhe atirar a primeira pedra?

Pois bem, há entre nós quem creia enquadrar-se em outro grupo? Ah, sim, o amigo ali. Como? Carrasco? Senhores, senhores! Calma, senhores, do contrário rompemos nosso pacto de livre expressão. Ou prefeririam os senhores que mantivesse ele o silêncio e nos privasse de conhecer o que seria – talvez – uma classe distinta de buscadores e criadores do bem? Como? Claro, funcionário público. Não, não precisa dizer de onde o senhor vem; todos aqui estamos cientes de que os carrascos ainda andam longe da via de extinção. Enfim, o senhor mata, diz não gostar do que faz e que o faz por ser preciso. É verdade: o amigo de há pouco causou-nos consternação dupla, de um lado, por confessar gostar de ser mau e, de outro, por termos tacitamente aquiescido em que tal a nós parece dever-se somente a alguma patologia; o segundo não nos pareceu diferente de nós outros; mas este, meus caros, este nos apresenta uma condição como que simétrica – ou seria complementar? – à do anterior. Vejamos: um faz mal – ou algum mal – pensando fazer somente o bem e o outro está certo fazer um bem enquanto faz de fato um mal.

  Mas entendamos. É evidente que esses bens e males não são universais, não agradam ou desagradam generalizadamente. O que é bom para uns não o é para outros e assim por diante. E eis a lição que aprendemos daí: a lição de que bem e mal não existem – é o que diz a garotinha aqui na primeira fila. Não, não estou seguro de que seja essa a lição: pois, ora, cada um de nós de fato experimenta, sente, o que é bom ou mau para si; não há duvidar de que bem e mal existem. A lição é a de que bem e mal são, sim, relativos, não apenas um ao outro, o que é evidente, mas relativos a quem sente ou percebe os eventos no mundo como bons ou maus. Esta lição já podíamos tirá-la faz algum tempo, desde quando o rapaz ali lamentou-se de não conseguir realizar um bem sem arestas, sem que alguém o entendesse como mal, ou mesmo desde antes, quando falamos da tolerância da cada um de nós para com as dores de viver. Bem e mal, por conseguinte, existem, mas não no mundo lá fora: existem em cada um de nós; é, como diria o amigo filósofo aqui nos prestigiando, um juízo. (Falei certo?)

Há outra lição que se pode tirar ainda neste ponto de nosso debate e já adianto-a: o companheiro carrasco ali não é diferente, de modo geral, da maioria de nós. Aliás, mesmo o rapaz na penumbra, embora, digamos, adoentado, não é também tão diferente de nós na medida em que tem razoável noção do que pratica, ainda que não consiga conter-se. Mas a nossa semelhança com o amigo funcionário público é grande o bastante para causar espécie àqueles de nós menos sinceros. Ele não passa de instrumento usado para perpetrar uma ação comum e, de modo geral (salvo por certos filósofos ou ascetas diversos), grandemente aceita em meio a nós, resumível no ditado que hiperbolizo: olho por olhos, dente por dentes. Sim, visto nem sempre parecer-nos satisfatória a troca de um dos nossos por somente um dos de outrem. Em suma, em maioria (assim espero) professamos o desprezo, a intolerância e mesmo o horror do mal, mas quase sempre não hesitamos em o utlizar quando entendemos de remediar-nos de algo que nos acomete. Bem, Samuel Hahnemann, estou seguro, não se orgulharia de nos mostrarmos assim tão intuitivamente homeopáticos.
Mais curiosa ainda se torna a situação caso eu pergunte aos senhores o que se opõe ao mal, o que se opõe no sentido de dar cabo, pôr fim a ele, ao que sem exceção me responderiam: o bem. A senhora ali no meio murmura - o que? Entendi: "e daí o princípio do dar a outra face". Espere! Não estou convencido de que o dar a outra face seja a fórmula exata do bem para dar cabo de todo mal: talvez no caso do amigo na penumbra, e ainda assim a depender do seu tipo de – perdoe, por favor, a franqueza – sadismo, pois há sádicos que preferem as vítimas que se recusam a oferecer quaisquer faces e seja mais o que for. Se o caso é o do indivíduo comum, que nos faz um mal acreditando sanar um outro que pensa haver sofrido por nossa causa, não creio que o oferecimento da outra face o sacie e é possível que o confundamos então com o sádico típico, se ele continua a maltratar-nos, ou que até faça meia volta, tendo-se dado por satisfeito. A questão, aí, está em produzir algo realmente bom para ele ou em não ter produzido o que o afligiu.

É possível que nossa intuição homeopática seja, no entanto, providencial: em certa medida ela pode ser tida por a única maneira de fazermos ver a quem nos causou o mal o que ele nos fez, mas exclusivamente quando isto se produziu por – digamos – engano. Já o dar a outra face, no contexto em que ocorreu, ensina apenas que diante desse tipo de perpetrador do mal não há alternativa a continuar saciando-lhe a índole sádica; não se tratava nem mesmo de ignorância pura: havia ignorância, sim, pois se ele compreendesse de fato a extensão de seus atos, não os realizaria, mas da ignorância se aproveitava o sadismo para exercer-se. Pois bem, o revide, o olho por olho (ou por olhos), talvez não passe – em certa medida – de um modo de trazermos o outro à consciência, embora nós mesmos, ao praticá-lo, incorramos no mesmo tipo de ignorância. O dar a outra face pode também o ser, a depender da circunstância ou mesmo de a quem a oferecemos. Enfim, ambos têm lá sua probabilidade de sucesso na contenção do mal.

 Bem, adiantamo-nos um tanto, mas já era tempo de fazer entrar em nosso debate a ignorância. Então a pergunta: se conhecêssemos sempre o modo mais adequado de agir, adequado, diga-se, sem que dele resultasse para ninguém qualquer mal, qual de nós – com exceção, é claro, do nosso amigo sádico – se recusaria a levá-lo a efeito? Era o que se esperava: silêncio geral. Assim, se soubéssemos, se soubéssemos...! Mas ocorre de quase nunca sabermos, como há pouco o confessou o amigo incapaz de produzir bens universais. E mesmo aqueles que demonstram muito saber, visto serem mínimos ou quase imperceptíveis os males advindos de seus atos, sabem que não sabem o suficiente para evitarem a imiscuição de qualquer mal nos resultados de suas ações. E eis que voltamos a falar do Papai Noel da filosofia: muitos morremos de velhos na esperança de o depararmos na sala em uma noite qualquer – eis o que muitos de vocês acabaram de pensar. Daí, entretanto, a compactuar com o caos, convenhamos, é um exagero.

 Daí ao perdão indiscriminado, diz aqui a senhora da outra face, é outro pulo. É verdade. Mas há alternativa ao perdoar, digo melhor, há um coadjuvante para o perdão. Sim. Acertou na mosca o senhor aqui: conhecer! O contrário de ignorar: bem contra mal, conhecimento contra ignorância. Dir-se-ia mais, entretanto: educar. Pois se nascemos, como afirmaram alguns filósofos, sabendo o que é o bem, parece evidente não sabermos com a desejada precisão como obtê-lo no e do mundo. E como alguns é pressuposto saberem um tanto, em vista mesmo do seu tempo de vida, nada mais adequado que passem adiante esse saber. E que ensinem, acima de tudo, a conhecer, já que, como vimos, são sempre novas as circunstâncias.

  Por fim, imagino que tenhamos compreendido um pouco a 'mecânica' – podemos chamá-la assim – de bem e mal para, em primeiro lugar, termos ciência de que não somos capazes de praticar o mal e tampouco o bem absolutos; para termos ciência antes, até, de que, seja o que pratiquemos, temos em vista sempre um certo bem, necessariamente (e tendo por alvo a nós próprios, não esqueçamos disto, ou seja, tendo por alvo tudo quanto de nós ou para nós consideramos bom, tudo de que gostamos: o altruísmo não passa de uma instância do egoísmo); para sabermos que só concedemos ao mal por ignorar como evitá-lo e que só o evitamos com a prática de bens, a qual só se logra com o auxílio do conhecimento; e, por último, para conscientizar-nos de que gente como Leibniz e Aristóteles não falaram por falar ou inconsequentemente do melhor dos mundos e da causa final.

sábado, janeiro 08, 2011

Sem poesia

Se acaso poesia aqui houver, não a terei posto eu. Poesia é presença acidental: raro atende quando chamada, aparecendo sem que a esperem. Em seu nome faz responder um simulacro cujo ardil é fingir onipresença e fazer pensarem os tolos que os cerca a poesia.

Por isso, se alguma aqui houver, a terá posto o olhar, usado como é em tomar às palavras o sentido mais rasteiro. Seja isto evidência de uma natureza moldada em volta de um sentido único que tem por objeto unicamente o prazer. Bastante é, às vezes, um termo, um som, um gesto acidental para despertá-lo, sem o que recolhe-se o sujeito ao desacordo a que dá o nome de dor. Por isso tanta poesia, mesmo se pouca, até quando nenhuma.

Livre é você. Sou apenas justo, embora incompreendido.


A um amigo óbvio e 'livre' (ou seria apenas 'liberal'?).

Liberdade é a ideia resultante da constatação do sujeito, a despeito de sua capacidade de antever, de a ação do outro ter sempre algo de imprevisível. A si mesmo o sujeito não pode com honestidade considerar livre. O mundo lhe aparece como o coibidor por excelência, diante do qual tudo quanto realiza tem de justificar-se, tem de fazer-se de maneira precisa, consequente, ou arrisca frustrar-se. O justo não pode ser livre como o outro, cujas atitudes é raro lhe parecerem por inteiro justificáveis. Amiúde a ação alheia só lhe é passível de alguma compreensão - de alguma justificação - muito depois de ocorrida, quando então pode ele, o sujeito, o justo, concluir não haver o outro gozado de tanta liberdade quanto lhe atribuiu quando não lhe compreendia o por que do ato. Mas como uma mesma justificativa nem sempre é plenamente aplicável a toda circunstância ulterior, pode advir ao sujeito a constatação de que não previu uma ação subsequente do outro e, por conseguinte, que este é livre na ocasião, ainda que mais tarde venha justificar o ocorrido com o mesmo com que justificou anterirormente outro.

O sujeito é sempre justo. Só reconhece o contrário quando lhe manifestam admiração, ou seja, quando outrem, que sujeito também é, dá mostras de não lhe haver previsto os atos, de não os haver justificado. Só assim reconhece que ele, sujeito, ao menos desse modo é livre também: quando lhe mostram que não é tão justo quanto de si e para si acreditava ser. Mas enquanto não dá com o reflexo do seu ato no outro continua o sujeito para si mesmo sendo apenas justo, incessantemente limitado. Os atos próprios lhe aparecem todos como consequentes: conhece muito bem - ou assim acredita - o por que de cada qual. Mais ainda: quase sempre está tão certo de ser justo que lhe custa admitir ou entender que assim não pareça aos olhos do mundo. É por isso que recalcitra, a despeito de advertido, apenas para permanecer incompreendido, embora a insistência nesse ato lhe possibilite também convencer os demais. Quando há convencimento, sua atitude então não é mais encarada como livre e sim como justificada (ou justificável), podendo ser adotada por todos quanto querem somente permanecer justos. Mas lhe é possível também submeter quem não se convenceu: quando isto se dá, sua ação, a despeito de - ou precisamente por - permanecer incompreendida, pode tornar-se, mais do que reprovável, modelar e, por conseguinte, cobiçável por quem almeje ser - ou parecer - livre.

A associação de liberdade com ignorância não é recente. A argumentação acima apenas a apresenta de outro viés, talvez menos intuitivo do que os vieses clássicos, e faz uso pródigo das ambiguidades que acarreta. Trata-se em princípio de longa e livre paráfrase da sentença de abertura de ’Discurso do Método’, na qual a expressão ’bom senso’ foi substituída pelo termo ’justeza’, em boa medida sinônimo da anterior, embora aqui apareça num contexto diferente daquele sobre que Descartes escreveu (o da metodologia da ciência) e que o especialista no assunto não hesitaria em designar como ética. O ponto polêmico do texto é a oposição flagrante dos termos ’livre’ e ’justo’, conotando o primeiro, evidentemente, transgressão e o segundo, acatamento de alguma regra ou lei. A um moderno liberal isto ressona inequívoca provocação; não o censuremos por haver abandonado a leitura antes do presente parágrafo. Afinal de contas o sentido de ’transgredir’ fixou-se nos últimos tempos numa conotação negativa, a de infringência de algo a ser cumprido, quando em princípio denota apenas ’ultrapassagem’. Nesse contexto, portanto, a transgressão do indivíduo livre esboçada acima não acarreta necessariamente o rompimento de algum trato, lei ou regra, mas um ir além disso, nada obstante tal possa ou não dar-se de maneira procedente: é possível ter-se em conta princípio maior, mais abrangente e, por conseguinte, melhor, ao se ultrapassar um outro, não tendo sido outra a forja de heróis em cujos tempos foram tidos por vilões. Em 'Temor e Tremor' Kierkegaard tratou de caso extremo dessa espécie, o de Abraão desincumbindo-se do que lhe encomendara Deus, a morte de Isaac: em virtude de cumprir o comando divino estaria o patriarca isento de responder aos preceitos da moral - ou da ética - humanamente concebível? - pergunta-se o filósofo.

Em suma, para o sujeito o outro estaria, sim, transgredindo alguma regra, mas não por necessidade infringindo-a. É possível que num primeiro momento fosse o ato tido por infringência, mas, uma vez justificado - compreendido - pelo sujeito, logo passa a transgressão no melhor dos sentidos. É também possível que o sujeito não justifique o ato alheio, o que, na circunstância, o autoriza a qualificá-lo como mera infração. Em ambos os casos é do sujeito a ignorância, ao menos a inicial, até que entenda ele o ato alheio, que o veja como justo, ou quando se rende por fim à evidência de não ser capaz de justificá-lo. No caso último a ignorância é também do outro: ao menos enquanto agia não se deu conta de tão-só infringir - e não de transgredir. Esse ignorar tem algo de perverso: observe-se que enquanto ignora como agir melhor, o sujeito (ou o 'outro') ignora que ignora. E ignora que ignora por acreditar que sabe o que faz: uma completa obscuridade, estado a que se está permanentemente sujeito e detectável quase sempre de forma tardia. Mas tal só se entende por intermédio de Aristóteles, para quem o fim último (ele chamou de ’causa final’) de seja o que for é o bem - ou um bem. Como é evidente, trata-se de sorte de axioma, ou seja, de afirmação não passível de provar-se por intermédio de artifícios da lógica - ou do discurso, como se mostra, por exemplo, que ’Sócrates é mortal’, desde que se admita por premissa que Sócrates é homem e que todo homem é mortal. Descartes disse o mesmo do ’penso, logo existo’: assim como a asserção aristotélica esta seria passível de somente experimentação. Em ambos os casos é mister gozar o experimentador de mínima sinceridade, ou se condenará a um insustentável delírio cético (você consegue, por acaso, convencer-se de que não existe?), ou à ilusão de ser capaz de conceber e empreender algum mal, em suma, tornar-se-á louco ou presunçoso caso não leve a sério as experiências sugeridas pelos dois filósofos.

Assim, a despeito de crermos no contrário, ao acatarmos o ’axioma’ de Aristóteles admitimos de enfiada nossa incapacidade de produzir o mal. E de fato o produzimos, mas exclusivamente por ignorância (a única justificativa plausível para tamanho desatino), como se fora sorte de bem: no fim de todas as nossas intenções há sempre algo de bom, ainda que, tornadas em atos, consumem algum tipo de mal. É evidente, o tal bem almejado, ainda que mínimo, o é sempre referido a um sujeito ou a algo que ele tem por parte de si, pouco importa se em pessoa não é ele o contemplado, como é o caso das guerras, em que se mata e morre por bem de um conceito diáfano como o de ’pátria’, do qual o indivíduo está convicto de ser parte, ou seja, de haver sorte de identidade ou comunhão entre a pátria e ele mesmo. Há uma lógica e mesmo uma 'mecânica' de bem e mal, passíveis, inclusive e como quaisquer outras lógicas e mecânicas, de algebrização, por cujo intermédio se demonstra que o segundo é sempre espécie de subproduto da canhestra obtenção do primeiro. Isto, entretanto, é matéria para outra oportunidade, bastando de momento entender-se que tal só ocorre por intercessão da ignorância: soubesse o sujeito como efetivar o bem concebido, isto é, sem daí surgir mal nenhum, é seguro que o faria: por pior que a alguém pareça o ato de outrem, este foi de fato o melhor que conseguiu realizar - é claro, tomando-se o partido de quem o realizou. E, como se pontuou acima, não raro o sujeito ignora que ignora a maneira de obter um bem maior. Um ponto imprescindível: é suposto concordarmos, para a compreensão do quanto aqui se disse e se dirá, em que bem e mal de fato inexistem no mundo senão como juízos, digo, senão como nota aposta pelo sujeito a tudo quanto lhe é perceptível - aí incluído o pensamento. O mundo é composto de fatos - como o queria Wittgenstein - em si próprios destituídos de bondade ou maldade senão quando presenciados por um sujeito, uma consciência. Há razão para que se os considere como o fazemos, embora o discuti-la tenha de ter lugar noutra instância, por bem da brevidade. De momento é bastante admitirmos existir bem e mal, sim, mas apenas enquanto juízos, sem que tal torne inviável o que se diz aqui.

Descartes dá sua explicação do fenômeno: admite não sermos capazes de saber tudo (admite a ignorância, portanto), mas culpa a vontade, que passaria à frente do entendimento no ato de conhecer e - até por pirraça, é de imaginar - escolheria o pior quando o sujeito é instado à ação. Em sua divisão desmesurada do espírito humano o francês concebe uma vontade desgovernada, embora divina, perfeita, como o é o próprio entendimento, para pôr a salvo de errar a ’clareza e a distinção’ dele, entendimento, razão (o que em princípio soa como justo). Nesse passo põe de ponta-cabeça a idéia de liberdade afirmando ser seu grau mais baixo a indecisão (ou a dúvida, esta que ele usou como ’método’, segundo afirmação própria, para o achamento das verdades de sua metafísica) e o mais alto, a escolha (ainda que a incorreta?), quando se é, então, "ainda mais livre". Em certo sentido tinha razão com respeito á indecisão: caso se aceite o ’axioma’ aristotélico, ignorante seria quem, ainda que não a efetive, crê ter escolha, uma vez que, seja lá como decida realizar não importa o quê, isto a realizar-se será invariavelmente um bem e um bem cuja amplitude ou cujos possíveis corolários, maléficos ou não tão bons, dizem respeito a o quão conhecedor do mundo - o quão sábio, portanto - o seu autor é. E quem crê ter escolhas, ao menos na acepção comum de liberdade, se diz livre, no caso, para escolher, é evidente. Em suma, livre seria quem vê diante de si miríade de opções a serem indiferentemente pinçadas: livre por ignorar qual delas é a adequada à circunstância, na qual seria, enfim, a única  de fato a merecer realizar-se visando a obtenção de um bem maior - ou um bem reconhecível por ao menos outro indivíduo além dele próprio. Observa-se que aqui Descartes entendeu a liberdade em sentido um tanto diverso do que a entende o senso comum: a indecisão - ou a iminência da escolha - seria para ele o mais baixo grau de liberdade, enquanto para o senso comum isto seja talvez o único. Mas ao afirmar que se é "ainda mais livre" quando é realizada a escolha, em que sentido seria possível entendê-lo, se algum há? Imagino que no único possível, o de estar-se livre do cumprimento daquele dever (invariavelmente o dever de produzir algo de bom), se - e somente se - este de fato foi cumprido, embora seja incerto afirmar, pelas indicações que deixou, que Descartes tivesse em mente isso.

Neste ponto o ’sei que não sei’ socrático ganha sentido intrigante: estaria o sábio a justificar suas falhas, em particular as futuras, ou somente a demonstrar a impossibilidade de se praticar o bem perfeito? Em ambos os casos a resposta pode ser afirmativa, o que tornaria a filosofia exclusivamente em sorte de ato de contrição, não fora a orientação inata para o bem do indivíduo, axiomática, a fazer dela, filosofia, também formulário de estratégias para buscar o bem com a menor interferência possível do subproduto mal. Além disso é pouco mais o que afirma o sábio saber, como, por exemplo, que não há escolha, uma vez que, em se supondo que é de fato sábio,  só se tem sentidos para o bom e, caso houvesse no mundo alternativa a este, sequer a levaria em conta, sequer a perceberia; sabe também ser cambiante sua percepção do bem, tanto maior quanto for o seu conhecimento do mundo; e sabe que é livre apenas quando desincumbido do dever, coisa que, a rigor, jamais se dá, pois o desencargo de um é de pronto substituído pela solicitação de cumprimento de dever subsequente e, assim, para todo o sempre enquanto viver.

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