quarta-feira, junho 17, 2015

Ignora, entretanto, por princípio

Defina-se, por exemplo, um objeto qualquer, como esta palavra. Esta mesma - ou qualquer outra no presente texto.

'Palavra' - fiquemos com ela - é termo-valise, não tão abrangente como 'isto' e ainda menos do que 'coisa', dizendo respeito ao universo do quanto se escreve ou se diz numa língua. Entretanto abriga, por seu significado, 'coisa' e 'isto', embora não por isso contenha tudo que nestes dois termos está contido. No seu caso particular está grafada num texto - este - que tem por objetivo demonstrar a impossibilidade de conhecer - assim como se crê ser isto possível. É também objeto físico, perceptível seja pelo olho, seja pelo ouvir e mesmo até pelo toque, possuindo alguma forma puramente mental que de algum modo nos escapa. Tem por uso essencial designar a si e congêneres, estas que, segundo a semiótica, levam o nome de símbolo, modo não exclusivamente humano de instanciar os existentes em geral no ato de comunicar. Palavras são sinais denotando o dar fé do quanto à volta do indivíduo há, muitas delas designando individualmente múltiplos existentes. Nem todo existente, portanto, tem sua palavra exclusiva, bem como é pensável que haja existentes denotados e sem palavra alguma a lhe corresponder. Na presente circunstância tem relevo, está em foco, por efeito das demais palavras ao seu redor, sem as quais perderia aqui todo o sentido apontá-la como se o faz...

Enquanto exemplo é provável que este tenha extrapolado algum limite e quiçá fosse desejável que outros limites se extrapolassem de modo a não deixar dúvida quanto à impossibilidade de, assim como o exige o verbo, definir seja o que for. Pois definir, sim, diz respeito a estabelecer um fim, um limite, para um conceito, coisa para que se criaram alguns critérios, mas que depende, evidentemente, seja do humor, seja da perseverança, em medida da curiosidade, por exemplo, de um sujeito. Assim, variando os caráteres, é possível haver alguns aos quais não satisfaçam os critérios comezinhos aceitos para o quanto seria uma definição razoável, rumando esses indivíduos para destinos ignorados, quiçá mesmo sequer existentes, para todo o sempre - se tanto lhes for permitido permanecerem existindo.

Definições são de hábito reveladoras da utilidade do que se define tanto quanto da paciência de quem o faz e pelo uso que delas fazemos no dia-a-dia podem demonstrar o grau de desimportância que damos às coisas definíveis, bem como de nossa displicência para com definir de modo geral. Por outro lado, entretanto, quem se arriscaria a passar a vida perseguindo até seu fim - se é que tal existe - a definição de seja o que for? Mas, ao menos em teoria, teria o prazer de considerar tudo mais que é capaz de identificar no universo enquanto durar a tarefa. Pois neste mundo não-importa-o-quê só é definível à exaustão se considerada toda relação que há entre isto e tudo mais, coisa por coisa, uma vez que se defina 'universo' (rasa, apressadamente) como o somatório de 'tudo': se está no universo, ora, é por partilhar com tudo mais - incluindo o universo ele mesmo - essa característica, esta por cujo intermédio ficam estabelecidas as tais relações. (Aristóteles desdenhava desse traço universalmente compartilhado por quaisquer individualidades, também exprimível por 'existe', por acreditar que dele nada de interesse se inferiria. Mas havemos de concordar em que ao menos como parte - óbvia - dalgum argumento, como neste daqui, pode ele ter algum serviço.)

Tomando-se, deste modo, o limite de hábito imposto às definições e tendo-se em mente o tanto desdenhado - o que se faz em nome de uma ideia (não menos vaga do que as demais) de utilidade -, é de forçar a autorreflexão isto quanto de fato se ignora, digo, essas relações, pois não se pode dizer conhecermo-las se não somos capazes de mostrar como se dão. Decerto por isso preferiu o filósofo admitir a própria ignorância, não por leviandade, é de acreditar, mas por provavelmente ser esse o único conhecimento por inteiro seguro, total, açambarcável numa única tese simples o suficiente para que se a tenha em mente todo o tempo. Disse o filósofo que ignorava não para justificar os seus erros, ou não exclusivamente para tal, pois com efeito erra, ainda que a contragosto: seria leviano se o dissesse com esse intuito. Disse o filósofo que ignorava para lembrar que não poderia permitir-se desistir de conhecer (*), para que o tolerassem quando fizesse do outro bengala sobre que apoiar-se e com que escrutinar, qual cego, a realidade passível de ser sabida, ainda que não por inteiro.

E ainda assim foi ele sentenciado: por demonstrar a ignorância universal e incontornável, por desafiar os limites do já definido, pelo atrevimento de ser insatisfeito confesso cujo único objetivo era produzir o mínimo de mal, uma vez que ignorantes da própria ignorância tendem a malversar o quanto lhes está à disposição, incluso o que acreditam saber. Não havia, em tese, com o que condená-lo, nada obstante o fizeram.

(*) 'desistir de conhecer': mera figura retórica, visto não se permitir a qualquer consciência, mesmo durante o sonho, não conhecer. Possa a expressão significar, talvez, o desapreço, somente, do indivíduo pelo empenho pessoal na obtenção voluntária de conhecimento.

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