sábado, março 04, 2023

Ainda a Fé

"Ora, a Fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem" (Paulo de Tarso)

Dito de outro modo:

"A Fé é o substrato da esperança e a prova do que se está por conseguir".

Ou melhor:

"A Fé é a substância da esperança e a evidência do que se espera".

Observação:

O fato de ser substância não a torna prova - evidência - do que é feito com ela, no caso, a Esperança, muito menos de outra coisa qualquer, no caso, o Esperado. (Por exemplo, a existência do metal de que é feita a tesourinha sobre a mesa não acarreta que haja tesourinhas nem que cortemos as unhas.)

Questão:

Paulo teria 'dado - filosoficamente - a louca', ou estaria definindo a Fé via contradição?

Ensaio de resposta:

Nem uma coisa, nem outra.

Na verdade não há contradição alguma se adotamos a solução de Agostinho, das três Virtudes Teologais, que ele chamou de Fé, Esperança e Amor no Manual que escreveu a seu respeito, em que demonstra como, no fim, consistem numa Virtude única - com três designações, no entanto.

Ora, se a substância da Esperança, a Fé, é idêntica a ela, então não só ela é sua evidência, como evidência, também, de seu objeto, aquilo que se espera (e por isso ainda não visto). Por quê? Ora, por não ser possível Espera (Fé) sem objeto, sem o Esperado.

Portanto, cada instante por vir é objeto da Espera, em seu advento apostamos como que intuitiva ou instintivamente a cada instante que o precede: é desse modo que viver procede, dando o passo que, pouco importa, pode não ser completado, mas que se esperou, em Fé absoluta, dar, completar. O ir em frente na vida é ato de pura Fé como Paulo a definiu, de puro esperar, e de que não é dado renunciar: um indivíduo sem Fé - Esperança - é aquele que já morreu.

E, ora, como não pode ser diferente, o principal atributo do Esperado é o ser bom, mesmo que eventualmente assuma os contornos de algum mal (como o estar vivo ao fim duma guerra, em que foi preciso matar), pois na circunstância é isto que o sujeito, o que espera, tem por algum bem, seja em sua incapacidade de conceber algo melhor ou por isso ser simplesmente o que acredita lhe caber, ser-lhe adequado e, por conseguinte, bom. Quanto ao mal ele mesmo, se categoria assim há, o sujeito antes desepera de que venha ou tenha de ocorrer.

É aqui, então, que se mostra a finura do Paulo catequista da então nascente Fé Católica: todo e qualquer bem esperado tem por necessidade outro que lhe seria maior, O Último dos quais, por assim o ser, também de necessidade sendo a fonte desses outros menores e que, justo por serem bens, consistem em meio de vislumbrar - esperar por - tal Bem Maior (sem qualquer outro concebível que O exceda, diria, mais adiante, Anselmo).

Ora, o fato de não ser possível haver algum bem que exceda o Bem Maior, indica não haver também nenhum que O preceda, que lhe seja menor, porque não pode assim ser, menor, algo que O denota, a impressão de havê-los, menores, sendo atribuível ao patamar donde cada indivíduo é capaz de O vislumbrar, condizente com sua condição de espírito, que condiciona Seu vislumbre a maior ou menor nitidez.

Assim, todos O intuiríamos, Bem Único, ainda que segundo as limitações de cada um, a doutrina cristã vindo a ser o caminho para o refino, a clarificação desse intuir.

sábado, setembro 12, 2020

Consciência de si (com exercícios)

Eu: algo passível de imaginar-se como densidade viscosa espalhando-se para qualquer parte a partir de um suposto centro, que o produz. Em aparência controlável, é provável ser aleatório tal movimento, que se designou por afeto ou amor, e cujo efeito é constituir o sujeito, açambarcando tudo quanto a este parece de utilidade para a sua permanência no mundo: se é mesmo ao acaso que se dá, então o útil se entende por aquilo a que por força tem o sujeito de adaptar-se para continuar vivendo e amor por uma mera constatação de ter isto de fato aquela utilidade.

A título de exemplo, realizar o exercício seguinte: definir exaustivamente a si mesmo e observar que os elementos usados na definição, sem exceção e com efeito, são distintos e externos relativamente a isso que se procura descrever, bem como, muitos deles, indiferentes no que concerne ao mencionado afeto ou amor, não raro incluindo o que o sujeito deveras detesta - ou o quanto tal movimento de açambarcamento enseja evitar. Notar que muitos dos objetos açambarcados - e efetivamente amados - já estiveram entre os que foram evitados.

Egoísmo: o ato mesmo de apropriação de tudo quanto a referida substância pegajosa açambarcou; o ato de, em diversos graus, tomar tudo isso por si próprio. Não raro se defronta o egoísmo com o fato de muito do que crê o sujeito pertencer exclusivamente a si pertencer também a outros. Na circunstância, só há duas escolhas, a partilha ou a usurpação, cada uma das quais dando, depois de efetivada, o tom - o modo - de o egoísmo do sujeito ser.

Exercício: enumerar, com vistas a estabelecer o tipo do próprio egoísmo, o quanto de si é partilhado e o quanto é usurpado. Notar que muito do que se acredita usurpado é de fato partilhado e vice-versa, e que a nenhum indivíduo é possível ser exclusivamente usurpador, pois teria de eliminar os demais que partilham o que usurpa (e, em fim de contas, tornar-se o único existente no mundo), nem exclusivamente compartilhante (a despeito da forte suposição de existir o amor incondicional, universal), pois deve haver algo do sujeito cuja partilha não interessa aos demais.

Afeto: ou amor; tudo o que o sujeito é capaz de expressar além do seu oposto, ou desafeto, desamor, ódio. Denota a ocorrência prévia de percepção, tratando-se, portanto, de uma reação ao percebido, embora o sujeito a sinta - ou perceba - igualmente. A idéia de sentimento - em princípio idêntica às de percepção, sentido ou sensação - induz à clivagem ordinária do fato (ou da existência - da manifestação, diria um grego antigo) naquilo em que o sujeito é, ou o eu, e no que ele não é, ou o mundo.

Paradoxalmente o mundo é tudo de que o sujeito se apropria para constituir-se e que, mesmo depois de apropriado, continua sendo passível de percepção pelo sujeito: em vista da mencionada clivagem, é de supor que o eu - ou o sujeito - percebe o que lhe é externo, uma vez ele ser precisamente o que ou quem pecebe, ao qual não se aplicaria a possibilidade de ser percebido sem afirmá-lo simultaneamente não-sujeito. Se ao sujeito, o que percebe, é aplicável a possibilidade de ser pecebido por ele próprio, isto se entende do seguinte modo: o eu, o cerne perceptivo, percebe-se no ato de perceber seja o que for; ele é perceptível enquanto perceptivo.

Por conseguinte, tudo mais lhe é externo, inclusive o quanto de que se apropriou do mundo, uma vez isto ser igualmente passível de percepção, desse modo sugerindo outra clivagem, complementar à de sujeito e mundo, desta feita no âmbito do sujeito mesmo, como se houvesse uma parte de si de que diria ser mais caracteristicamente ele próprio, a qual percebe o mundo, ou isto que ele, sujeito, não é, mas percebe também o que ele, sujeito, se torna quando se apropria das coisas do mundo, estas que, tendo-se tornado ele depois de apropriadas,  não o foram profunda ou inerentemente, no entanto.
 
É de supor, enfim, ainda em torno das clivagens que a idéia de percepção sugere, que o perceber a si mesmo do centro perceptivo é operação produtiva de contínuo afastamento desse centro perceptivo relativamente ao quanto percebe, donde, então, a idéia de que ao perceber-se (como se disse, no ato de perceber seja o que for - a si própria, inclusive?) a consciência se distancia de si mesma, afundando-se continuamente no suposto centro onde de hábito crê estar. Enquanto ato de afastamento, distanciamento ou clivagem, quando voltada para si mesma a pecepção como que termina por não se reconhecer como tal, mas como uma das coisas a si agregadas e que a constituem. Portanto, em quaisquer de suas modalidades perceber - e, por conseguinte, sentir - é distanciar-se, dar passos para aquém do que se percebe: é criar abistmos.

terça-feira, junho 09, 2020

Refletindo, como sempre, sobre o óbvio

Em verdade - diga-se com todas as palavras - praticamente todos estamos cooptados, primeiro, pela ideia de que há de fato oportunidade para todos, proposição delirante quando referindo um sistema de gestão de riquezas como o capitalismo; segundo, pela ideia de que a ideia anterior se sustenta porque há possibilidade de crescimento infinito num universo finito como o nosso planeta, outra proposição delirante que tem transtornado tanto o pensamento social quanto o da matemática (e isto já faz tempo!); por fim, terceiro, tendo por base as duas ideias anteriores, aprendemos a justificar a ganância generalizada, equanimizada, ainda que na prática isso resulte no perpétuo estado de guerra em que vivemos há milênios, seja entre nações, seja no interior de cada uma delas. 

E, o maior problema de tudo isso: já não nos damos conta de haver problema: engendramos uma resistência às angústias de vivermos nessas circunstâncias tirada do brinquedo de derrubar dominós com a queda de outros e na qual procuramos transferir a quem mais próximo de nós estiver a bordoada ou a dor da que acabamos de receber; terminou parecendo-nos natural ou lógico que a grei humana - nossa própria sociedade assim pobre de espírito - seja cópia piorada da competição pela vida no que chamamos 'mundo selvagem', o qual tememos e de que nos escondemos uns trás os outros, como se o perigo maior estivesse do lado de fora. E por não vermos o problema, por achar ser possível sonhar num pesadelo como este, proibimo-nos o sonho ele mesmo, o sonho autêntico de quem dorme o sono dos justos, dos que cumpriram suas missões do dia, encerrando nessa gaveta de proibições invisitáveis mesmo as ideias plausíveis, a própria lucidez: já não refletimos mais.

terça-feira, junho 02, 2020

Da inútil - evitável e risível - batalha de todos os dias de nossas vidas

Bonecos de piche nem sequer deveriam ser tocados, ainda que de leve, por seja quem quem diz prezar o próprio asseio, porque mesmo se ocorre de não se ver grudado à gosma, terá um trabalhão para limpar o que, é certo, lhe ficará sobre o corpo. Abordar mais violentamente um artefato desses é, portanto, sinal preocupante de não só o propósito de imundar-se, mas, é possível, de o fazer por gosto. Por infelicidade, parece haver uma compulsão da maioria da humanidade para ocupar-se desse gênero de tolice, na certa por ver nisso algum uso além da pura prática desportiva.

Bonecos de piche são claramente tolas armadilhas concebidas para os dotados de inimaginável estultice (que erroneamente se atribui aos pássaros que por infelicidade buscam apenas descanso para as asas pousando neles sem saberem o que são), sendo deprimente assistir-se a membros da outrossim autointitulada espécie dos homens debaterem-se em meio ao grude, ainda mais quando deixam claro não lhes passar pelas cabeças a intenção de se soltarem, mas, quando muito, de livrarem uma mão, um pé, um joelho, ou até mesmo a cabeça para continuarem arremetendo contra a indiferente mostruosidade. Repita-se: poderiam todos ter-lhe passado ao largo e não o fizeram, poderiam ao menos tentar descolar-se por inteiro, o que não seria tarefa para fracos, mas persistem na chafurdice, sofrendo toda sorte de dano, pois o esforço para desferir novo golpe não raro resulta em acertar em si mesmo ou em quem estiver nas imediações.

Os aprisionados em bonecos de piche estão, assim, em guerra perpétua uns contra os outros e, claro, contra o boneco mesmo. Se perguntados sobre o propósito de tamanho e desatinado esforço, quase em coro dirão que é o de reformar o espantalho, torná-lo menos desagradável de se ver, estética em que, percebe-se em seguida, não concordam entre si, e também por isso, não bastassem os golpes que desferem uns contra os outros sem intenção, se agridem. É indubitável, portanto, que gostam do boneco de piche, gostam de odiá-lo e de imaginar como fazê-lo menos intolerável, ainda que não tenham como, ou que o façam ainda pior com as tentativas.

Muitos - milhões - já passaram ao longo dessa insana labuta, a grande maioria, afixiada, seus corpos absorvidos, afundados no visgo espesso, seus ossos servindo aos vivos de armas, quando achados na massa disforme e mutante. A podridão, mesmo a boa distância, é insuportável e poucos  - muito poucos - são os que vivem fora desse jogo aterrador, poupados pela sorte de não haverem nascido em meio a ele. Vez por outra são convidados, aos gritos, pelos desesperados aprisionados, para se juntarem à sua luta desvairada, coisa que um mínimo de sanidade bastaria para conservar-se boa distância. Mas não é que há quem lhes atenda?

O que haveria de tão atraente nos bonecos de piche? Parece não haver, dentre os que lhes estamos grudados, quem tenha uma resposta.

quarta-feira, maio 27, 2020

CO-VIDA

A nova ortografia reserva o hífen, no caso desse prefixo,  apenas para quando o termo que o segue inicia por 'h', mas o propósito aqui é outro, que não desafiar a recente e malfadada norma culta da língua e, a bem da verdade, inteiramente singelo, autoevidente: enfatizar, deixando claro seu protagonismo, o prefixo,  prevenindo a hipótese de a má digitação (maneira corrente e privilegiada de denotar esse dever de parecermos espontâneos nas redes sociais) ter privado o termo de - por exemplo - um  'n'. Sob o peso de semelhante incerteza, o trocadilho não resultaria no intencionado, embora não seja de desprezar, em meio às tantas possíveis no presente contexto,  a ideia de ainda estarmos sendo 'convidados' - antes de 'compulsados' - a adotar esse modo de vida que, se caminho para certo morrer, como qualquer outro, decerto o é para um comum, um morrer coletivo e, é provável, de fome, caso o tédio não dê antes o seu serviço.

Mas não há negar que, designada como está, 'co-vida' é puro eufemismo, porque a vida com a qual vai, com a qual faz par, é agora de natureza puramente ficta, a ser vista passar, fantasmal, hipotética, da janela que mantemos aberta para o imaginário, embora não menos conducente, também, a um morrer único - ou unificado - do que o é a vida corrente, a co-vida, que da outra nos salva : há uma analogia com aquela charge do velho semanário 'O Cruzeiro', em que a solução para impedir a cama elástica de devolver a vítima do incêndio ao local donde saltara foi, moral da história, "abatê-la a tiros". Algo deveras humanístico, há-de reconhecer-se,  tem a sinistra ingenuidade desse humor, sintetizado no inevitável clichê "dos males, o menor" - ou, no caso, o mais rápido, detalhe dissonando do que seria de esperar de esperar-se sentado por uma de duas mortes certas.

De que, então, de tão terrível escapamos com aquiescer em co-viver? Qual sofrimento faria preferir morrer-se, antes, de melancolia ou inanição? A julgar do que se diz da pandemia desde sua infância, é muito provável a humanidade haver enfim deparado o coquetel do que a tem matado desde sempre, à exceção dos desastres, naturalmente, e do gênero  sombrio e comum de fim preconizado, agora também, na co-vida. O currículo de acometimentos atribuído a essa moléstia parece esgotar os polpudos tratados da patologia disponível e, respondesse o organismo humano com infinitas expressões a seus agressores, estaríamos já cunhando neologismos para nomear a inusitada sintomatologia, o que mais cedo ou mais tarde terminaremos mesmo por fazer, haja ver a emegência de incontáveis combinações do modesto conjunto de sinais somáticos e sua potencialização pelo que possa lhes estar ao redor: sem esgotar, evidentemente, a lista, considere-se o que a genética teria emprestado do HIV ao vírus,  seu disfarce de inocente resfriado conducente a colapsos respiratórios variados, as dores que o assemelham à dengue ou chikungunya, os súbitos infartos e apoplexias, os males dos rins, tonteiras e perdas do tino, os desarranjos digestivos, coceiras, eczemas, a cumplicidade com as torres de transmissão eletromagnética de dados, a subversão dos respiradores artificiais, as influências da mínima atividade por que passa o Sol,  da ressonância de Schumann e da mudança do clima, para não falar do ecossistema  - de espaços fechados com gente apinhada e ar permanentemente refrigerado - construído pelo capitalismo com o fim exclusivo de amealhar com eficiência o lucro e que maximiza  o virtuosismo de seu contágio.

O cosmologista Neil DeGrasse Tyson afirmou há coisa de dois meses, em programa de auditório, que compulsória e involuntariamente nos tornáramos parte de experimento de âmbito mundial cuja meta seria investigar o quanto confia na chamada ciência a humanidade e cujo resultado, em vista do tema impenetrável, se restringirá a um de dois graus possíveis e extremos: total - e cega - ou nenhuma. A co-vida tem sido até agora o que de mais consistente nos tem ela, ciência, oferecido quando é caso de mal contagioso e que, reconheçamos, não excede o que há milênios se tem aprendido das avós, enquanto soluções milagreiras, incluindo as vacinas, ganham e perdem apoio, inclusive no seleto meio científico, com a presteza com que deveríamos trocar de máscaras - como sugerido por alguns. Nada obstante,  em termos de eficácia , a co-vida parece ter a mesma dos estados de sítio mantidos até esgotar-se a paciência dos sitiantes, nada pequena, por sinal, para organismo assim diminuto, infinita, se comparável à de nós, sitiados, tornada ainda menor pelo exercício compulsório da tolerância recíproca dos que imediatamente convivem num mesmo espaço de confinamento ou, quando se está só, de si próprio: não admira, pois, que tantos venham escolhendo retornar à normalidade antiga e, agora,  tão nova da vida, a despeito da certeza nebulosa de seus riscos.

sábado, dezembro 28, 2019

Fuga em si

Embora parado, quase estático em frente ao monitor, está em fuga. Foge do vexame que como por desencanto o mundo lhe revelou ser. Foge - ou quer fugir - para algum lugar, não para um qualquer, como Passárgada, vez que inté lá é preciso ter amizade com rei se é desejo estar bem. Foge com os dedos, únicas partes do corpo que ainda é capaz de mover além das pupilas, naturalmente. Foge com olhos e mãos na direção única que lhe parece restar, ainda que à frente tenha por perspectiva vexame outro, vexame de que em tese é impossível fugir e ao qual já está - vexaminosamente, por inteiro - habituado. Por isso, a terceira pessoa, máscara ou disfarce que vestiu para fugir. Foge dum vexame para outro e para trás dum terceiro, que seria algo como o próprio corpo, ou tudo quanto aos de fora parece ele própeio ser, vexame a mais, desimportante, se comparado ao que o rodeia e ao que escolheu por destino. Vantagem alguma parece haver nesse fugir, salvo talvez a de saber que não excede a norma, que, enquanto foge, é como qualquer um, com a distinção, embora, de se saber fugitivo e fugitivo de um ridículo para outro, não, de necessidade, um menor, mas apenas tolerável, espécie de porto em que estará alerta, em trânsito e seguro do retorno da balsa que o levará ao lado sobrante, o outro, que é também lado nenhum, onde, enfim, será amigo de ninguém, vez que parece haver ali rei nenhum, pessoa ou mesmo coisa alguma, e onde estará a salvo de todos os vexames e outros sentimentos que os contrastam ou anunciam (o que dá no mesmo), a salvo da felicidade e, por conseguinte, do receio de quando é ou estará feliz. Parece não haver escolher, e isto ainda lhe parece bom.

sábado, agosto 10, 2019

O masoquismo em seu 'não-lugar'

O conhecido 'princípio' que se escreve como 'fazer ao outro o que se faz a si mesmo' ou como, em versão negativa, 'não fazer ao outro o que não se quer feito a si', tido por lema de vida para os autodenomimados 'indivíduos de bem', seria de fato um princípio? Estaria ele de acordo com a noção de 'princípio', isto é, seria noção fundamental, verdadeira, da qual se deduzem outras igualmente verdadeiras? Parece que não, se pensamos no masoquista - ou na porção de masoquismo em aparência tolerada em si próprio por todo indivíduo dito 'normal'. Na circunstância de um masoquismo 'padrão' ou 'por definição', como se sabe, seu sujeito é instado a acatar o sofrimento, mas não de necessidade a impô-lo ao outro, caso contrário, é de imaginar, tornar-se-ia um sádico, salvo se - parece pensável ou provável - tomasse a atitude por imperativo moral, esse mesmo de proporcionar o bem a seu semelhante, exatamente como é proposto pelo 'princípio' acima. E como para ele, masoquista, é bem o que para outros, ditos normais, é mal, sua consciência poderia continuar tranquila quanto a, inclusive, estar passando-se por sádico, desgosto esse suposta ou necessariamente profundo para o masoquista ávido de egoística satisfação e, aliás, por isso mesmo fonte potencial a mais donde extrair seu prazer às avessas: o dissabor de praticar o sadismo pode, sim, ser uma maneira legítima de satisfação para o masoquista 'padrão' e, evidentemente, de demonstrar a falsidade do 'princípio' em questão, chamado por alguns de 'regra de ouro'!

O alvo evidente dessa regra é,  para bom entendedor, o disciplinamemto do sadismo, o igualmente 'padrão', cujos sujeitos são supostos rejeitar todo sofrimento que não seja o de outrem. O perfil dum sádico não aparenta ser, então, o de quem rejeita prazeres em geral, tendo embora preferência particular por esse de desfrutar do sofrimento alheio. Em termos de prazer, portanto, ele parece estar de certo modo mais ou melhor alinhado com o perfil da 'normalidade' do que o masoquista, que viola o que para ela, normalidade é, isto sim, fundamental, o princípio da autopreservação, no qual estaria implícita mesmo dose 'cautelar' de sadismo, isto é, o conhecido comportamento de que é exemplo a popularíssima expressão 'antes você (ou ele) do que eu'.

O masoquista, segundo parece, é essa entidade aparentemente sem lugar próprio ou muito claro na realidade, quase como os paradoxos: sua existência - ao que tudo indica, verossímil - é capaz de violar, como se vê, a 'regra de ouro', sem falar em que frustra, em sendo por natureza como é, a potencial fonte maior de seu prazer, que se acredita ser o sádico e que  em termos lógicos não pode mesmo desempenhar semelhante função, já que desfruta do sofrimento alheio, que o masoquista é incapaz de lhe proporcionar. Nem o lugar de complemento do sádico, pois, o masoquista parece conquistar neste mundo, porventura restando-lhe aviar-se por conta própria sempre que falha em enganar algum com apenas fingir-lhe que sofre, o que, a propósito, parece ser outro modo de o masoquista amealhar gozo extra, isso de reprimir a manifestação de que goza.

quarta-feira, julho 17, 2019

De sucessos e fracasso

Os paradoxos que temos de engolir, é provável que por serem as maneiras mais à mão - talvez as únicas - de que dispomos para fazer sentido das coisas.

No I Ching, por exemplo, se demonstra haver uma só coisa imutável: a mutação sem pausa das coisas em outras, fonte exclusiva - inclusive(!) - da noção que temos de tempo.

Se compreendemos e aceitamos esse argumento como regra geral, universal, temos de admitir que a permanência (no tempo, portanto) da ideia que fazemos de nossas identidades próprias, pessoais, se dá por termos 'algo' dizendo-nos constantemente que mudamos e como isto se dá, 'algo' dando conta de uma história cujo sentido inescapável é o de tornar-nos melhores! - 'melhores' no sentido básico de 'adaptados o melhor possível' às reviravoltas (ou transformações) de tudo mais ao redor.

O que possuímos de ponderável, pois, não passa da consciência de sermos imponderáveis por possuirmos habilidade limitada para estimar as mudanças por virem, mas de sermos também confiantes de que continuaremos a responder da melhor forma que pudermos a todas, de que nos manteremos adaptados.

Nesse sentido somos uns vitoriosos e, como dizia Humberto Marini, "pecadores sem culpa": o fato de permanecermos é sempre indício de sucesso, a despeito mesmo do que de miserável se faz para permanecer e seja qual for a medida em graus ou volume usada para estimar os valores de uns relativamente aos outros sucessos - o que não acarreta dizer que  aquietemos, que nos locupletemos de ou nos resignemos a perspectivas quaisquer, não importam seus tamanhos - ou grandezas.

Já o fracasso, outro absoluto, não tem senão um modo único de se dar, todos o sabemos ao testemunhar quando se abate sobre outrem, e se algo de bom há a esperar de quando vir apresentar-se a cada um de nós, em maioria nutrimos a expectativa de o não percebermos, de o não vivermos em sua imperscrutável condição, ou não além de notar, como se concede a uns tantos de nós, que é iminente.

quarta-feira, maio 01, 2019

Da arte de ser tão só parte

Como diz  mesmo o termo, 'política' seria a arte de viver em grupo - para os gregos, a 'pólis' - e abrange infinitamente mais do que o desejar um bom dia ao concidadão ou lhe endereçar  um sorriso combinado. Política seria a arte de pôr em prática a compreensão das regras, a maioria das quais mutáveis, que se autoimpõem no momento em que sentimos o quão impotentes nos revelamos quando sós para a realização de tarefas básicas do estar vivo.

É preciso, pois, adentrar de vontade própria o universo dessas regras, as leis, se queremos sustentar o diálogo difícil do 'quem faz o quê' na grei. É preciso manejar alguma lógica ou, na verdade, muita, ter em foco a ideia do outro como se teria a de si mesmo e sem piedade saber colocá-lo também onde você, sujeito, está.

Mas é preciso muito mais ter persistência, ser paciente, curioso com o que há de mais simples, respeitando sua complexidade inerente com a aplicação dedicada do entendimento. É preciso, acima de tudo, ser exemplo, pois só ele, exemplo, é capaz de coreografar as ações à volta, porque ações só existem em encadeamento, jamais isoladas, livres umas das outras, como se quer acreditar. Além disso, só é preciso um pouco de medo do exemplo que se dá - do exemplo que se é - para manter o sujeito sempre um pouco fora de si, como se não fora nem mesmo o outro, como se fosse ninguém.

terça-feira, outubro 09, 2018

Para bom entendedor,,,

...  até meia resposta basta. Entretanto ela é aqui reportada como a ouvi, por inteiro, embora omitindo a fala que a motivou, pois é, além de óbvia, uma questão de higiene e bom gosto mantê-la a distância segura dos olhos.

"Louco? - disse - Nada. Sou como vocês, idiota, e só o admiti depois de compreender o desperdício de energia e tempo que foi procurar mostrar para idiotas o que não querem ver, principalmente se saído das melhores e mais brilhantes cabeças. Entender o que elas dizem foi certamente um feito para alguém do nosso porte mental, mas o obscureci ao querer e tentar fazer com que vocês compartilhassem desse entendimento, coisa a que só mesmo um idiota se prontificaria."

segunda-feira, agosto 20, 2018

-Discordo!

Por resposta, olhar vítreo, imóvel, silêncio.

-O quê?

-Discorda e...

-Discordo e ponto!

-Bem, sou grato pelo elogio, mas tenho de recusá-lo.

-Elogio?

-Sim. Ao me omitir as razões de sua discordância você sugere ou supõe que as conheço ou sou capaz de descobri-las por conta própria, lisonja sedutora de que por honestidade sou obrigado a declinar.

Silêncio, estupefação.

-Não vê? Em primeiro lugar, fosse o contrário, eu não teria aguardado você apresentá-las. Depois, se as conhecesse de antemão, estaria evidente eu não concordar com elas quando expus outras. Por fim, se as admitia e, assim mesmo, insistia nas que você disse recusar, incorri ou em estúpida contradição (assim fazendo jus, se tanto, a sua piedade), ou em imperdoável desonestidade (não merecendo então sequer a gentileza de sua discordância) - o que, me parece, não foi o caso.

quinta-feira, maio 03, 2018

Razão proficente ou 'intuição'

Só o fato de discutir, analisar, a afirmação de a intuição ser substitutivo da razão é indício de o assunto não ser intuitivo, ao menos não no sentido que se faz de 'intuição'. A rigor perceber e compreender, além de semelhantes ou quase sinônimos, são ações que de necessidade passam pelo crivo da razão, no sentido aritmético mesmo, uma vez que, até onde se sabe, na massa encefálica e nas enervações que a completam permeando o restante do corpo tudo se dá, em última análise, por meio de pulsos, os elétricos, ao passo de reações químicas que os estimulam. Som, cor, textura, sabor e cheiro, sem falar na denotação interna, no meio cerebral ele mesmo, disto e do tanto mais que isto faz aparecer ali, como os conceitos, as ideias, tudo se passa no cotejo de pulsos e em sua resultante razão.

Mas nem era preciso ir-se a essas lonjuras ou miudezas porque seguramente a humanidade as ignorava quando se deu conta da analogia de razão numérica e processos cognitivos, que resultam sempre, do cotejo ou comparação de ao menos duas coisas, na ideia ou conceito em que é resumida a operação.  Os antigos já sabiam igualmente que assim como quaisquer dos demais processos do corpo, como o correr, pular, cantar, tocar um instrumento, desenhar, e outros tantos, os da cognição podiam ser aperfeiçoados, inclusive no tocante à rapidez, sem falar na profundidade e no alcance.

De volta aos nossos tempos, hoje se sabe, por exemplo, que o tatibitate dos bebês está longe de ser brinquedo tolo e via de regra as crianças serem mais sincera e rigorosamente científicas em seu escrutínio do mundo do que muitos dos seus pares cientistas por profissão - que por terem mais idade, como já observava Aristóteles, estão mais enfronhados no disse-me-disse da pólis, o que não seria sempre tolerável por um espírito de ciência autêntico. A preocupação com o exercício do corpo como um todo e o desfrute da consequente proficiência parecem inerir à natureza animal antes de exclusivamente à humana: e aí o intuicionismo afobado tenderá a ver o buraco onde proteger-se do que estará certo de ser ameaça à sua existência, no que, é lamentável, se engana, porque o objetivo aqui, como já deve 'intuir-se', é o de ver a intuição como o mais próximo possível do que de fato pode ser.

Em vista de tudo no ato de conhecer ter de passar pela 'ratio', intuir seria, pois, a ação da cognição proficiente, ágil em virtude do treinamento, ao invés de faculdade suplementar e suposta distinta e até superior à de raciocinar. Fosse diferente da razão e efetivamente superior a ela, a própria língua ter-se-ia encarregado de eliminar a porção negativa da dubiedade que muito justificadamente usa para referi-la: na fala comum 'intuitivo' se diz tanto da proficiência constatada como da falha grosseira de um palpite. Insistir em dizer de alguém 'intuitivo' cerresponderia, portanto, a louvar os acertos de suas opiniões súbitas ou a qualificá-lo de improfícuo - ou de coisa pior, como de preguiçoso contumaz.

quarta-feira, abril 04, 2018

Borges: a homenagem é o ultraje

Faz tempo me perguntaram, quando ainda procurava publicar coleção de histórias fantásticas, por que eu escolhera imitar Borges em vez de arriscar caminho próprio. Ora, não pude senão agradecer por me ter atribuída tamanha habilidade, que de todo ignorava. Mas fui também forçado a indagar o que, além do 'Borges' no título e da obstinada menção a alguns de seus temas prediletos e deliberadamente transtornados, teria induzido a verem na simulação adrede abortada do estilo e no abuso de uns tantos de seus hábitos que Borges ali pudesse ser menos que projeto de vida enquanto objeto de estudo, ainda que na forma de literatura, personagem submetido à tragicomédia habitual de ver-se assediar pelo universo criado por ele próprio. Afora o gosto acentuado por falsificar, que emprestou de longa tradição, o único traço genuinamente borgeano do conjunto é provável ser o virulento sarcasmo, tratado entretanto como se passível de potenciação, sarcasmo elevado a si mesmo, escancarado e vil como jamais Borges, o autêntico, se permitiria usar, embora à guisa da insistente homenagem reverberando, atrevida, a cada página, enquanto as compunha tivesse por norte a suspeita infame e vilã de que semelhante ultraje de algum modo o agradaria.

sábado, março 17, 2018

A saída é para fora!

A tragédia está na certeza de que a revolta e o luto justos por mais esta morte renovam a munição de um dos lados nessa guerra sem fim, em outros termos, ampliam a perspectiva de mais mortes, que municiam os justamente revoltados e enlutados por elas, fazendo novos mortos, e assim para sempre nesse ciclo tão antigo quanto esta civilização.

Tudo em nome do controle do mecanismo de controlar gente, a cuja permanência se tem anuído por mera habituação, uma vez que já se nasce sob sua influência.

O fato de haver quem o critique tem sido em grande medida irrelevante para alimentar o suficiente desinteresse por controlá-lo e o consequente fim da conflagração: ainda são muito poucos os que compreendem a inutilidade de se batalhar pelo que não comporta alterações que o desviem de fazer aquilo para que foi engendrado.

Além de não haver como consertá-lo, porque não há conserto para o que não apresenta disfunção e tem servido muito bem aos propósitos que lhe justificam existir, não se presta também a servir na transição para o próprio fim (como podem até se prestar alguns de nós a cavar a própria cova antes de executados).

É como diz a ladainha dos que o defendem, que ademais da franqueza crua são provavelmente os únicos, à exceção de quem não vê sentido em cotrolar gente seja como for, a dizer sem rodeios a verdade: adapte-se a ele ou pereça ou, caso encontre algum buraco fora de sua influência, transfira-se para lá, abandone-o; porque sob sua alçada o jogo é consabido e em vista das regras é muito mais provável ser imensamente maior o número de perdedores do que o dos que ganham.

Desistir deste Estado que existe para o manejo das finanças, que por sua vez são incapazes senão de malversar a distribuição de riqueza, não é desistir do Estado no sentido essencial, pois Estado é o que carrega consigo todo grupamento de indivíduos ao meramente interagirem.

Abandonar o Estado financeiro, única alternativa dos que o crticam com sinceridade, é em princípio devolver a noção de valor à condição original, a de derivar do diálogo de necessidade e esforço - ou trabalho - para obter aquilo de que se necessita, e reaprender a lidar com ela sem intermediário, assim como é abrir mão de esperar que seja possível encontrar a equivalência justa do que é trocado, que só existe se imposta, ainda que sob a ilusão de resultar de acordo.

Abandonar o Estado financeiro é, portanto, reingressar no esquecido universo do compartilhamento do que é necessidade universal e, em consequência, responsabilidade de todos, deixando para trás, também, líderes, guerras e seus mártires.

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Ainda 'a liberdade'

"Liberdade de escolha" ou "liberdade para escolher": continuo ouvindo a cantilena sem ser capaz de fazer dela sentido. Afinal não é toda escolha orientada por um critério (que pode até set o 'uni-duni-tê') além de ter por finalidade livrar quem a faz de algo (ou melhor, de uma necessidade)? A liberdade seria então uma consequência - ou uma expectativa - da escolha, e a escolha, por sua vez, seria sempre determinada por uma pressão, a pressão de que o sujeito que escolhe quer ver-se livre e de que se livrará se a escolha for acertada.

A circunstância de alguém tolher uma dada escolha de outrem é comum, além de ser sinal de que este indivíduo tem de fazer, antes desta, uma outra escolha, a que vai livrá-lo de ser tolhido - ou de quem o tolhe!

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