(texto originalmente publicado na edição de setembro/outubro de 2004 do jornal ParaTodos, da ESPM-Rio)
A edição de agosto último da revista 'Superinteressante' - conhecida divulgadora de ciência e tecnologia - traz reportagem a um tempo lisonjeira e desconcertante sobre música. De um lado, mostra que a divina arte está presente, sem exceção, em todo canto do planeta e enumera alguns de seus efeitos (todos observados e comprovados como manda o figurino científico, digo, valendo-se de medições exaustivas), entre os quais o aumento significativo de sinapses (o nome dado pelos cientistas às conexões de neurônios), o que, trocando-se em miúdos, faz do usuário e, mais ainda, do praticante de música pessoas cujas massas encefálicas estão aptas a realizar, com grande rapidez, número maior de operações que as demais. Sim, parece que músicos e seus ouvintes regulares são de fato muito inteligentes, ou assim querem crer os pesquisadores! Por outro lado, após esse caprichado lustro nos nossos egos, a matéria não pode deixar de puxar o tapete, quando informa que a utilidade da música, infelizmente, ainda é por completo desconhecida, em resumo, ela não serviria para nada. Ora, de tudo quanto até aqui se disse, parece óbvio concluir que, se puxaram algum tapete, esse foi o da própria ciência, pois a música termina servindo, se não para outra coisa, ao menos para aumentar a inteligência!
Uma abertura assim deixa claro que toda esta conversa tem por alvo levar, no mínimo, a um maior consumo de música, não bastassem as pilhas de cds e dvds, as trilhas sonoras de novelas, filmes, publicidade, e as horas incontáveis nas filas à entrada dos concertos que são parte da vida de qualquer um. No mundo moderno, se depender do volume musical despejado em nossos ouvidos a todo instante, antes de mais inteligentes, tendemos mesmo é a ficar mais loucos, em especial se considerarmos o aspecto qualidade.
Não, não se vai desfiar aqui um receituário estético, pois isso é, a despeito do quanto se diga e se queira provar, uma questão pessoal. Cada qual sabe o que quer e pode pôr para dentro de casa ou das orelhas (pois agora tudo tem de vir com bula, embora quase sempre em tipos praticamente ilegíveis, é bem verdade)! E qualquer gênero de arte, não apenas a música, tem seus representantes mais e menos nobres, fato de conhecimento universal. O objetivo aqui, portanto é outro: nada de crítica, de censura, nada de mais estímulo ao desbragado consumo já existente.
Trata-se, em suma, de convite à produção. Sim, a passar de consumidor a produtor de música. De especial, na convocação, o seu caráter irrecusável, e para tanto espero contar com um mínimo de sagacidade, prometida na ciência, propiciada pela imersão musical a que venho me submetendo por toda a vida. Tamanho cuidado tem justificativa: um sem número de objeções ostentadas por quem, em última análise, ainda não rompeu com a inércia de ser somente ouvinte. Estas, de modo geral, têm aparência convincente e entre as mais comuns está, em primeiro lugar, a falta de tempo; depois vem a dificuldade presumida na aprendizagem da música, o questionamento da própria aptidão e, mais para o fim da interminável lista, o fato de alguns, de modo circunstancial e descompromissado, já fazerem música (todos temos nossos momentos de karaokê, de rasqueado, de caixa de fósforo).
Dessas possíveis recusas, a mais forte - por incrível que pareça - é a derradeira, pois, no caso, se está, bem ou mal, na posição de músico - daquele que a produz - e assim incrementando as próprias ligações neuronais em escala maior do que quem apenas escuta. Entretanto, essa prática não difere muito daquela de quem acha que exercita convenientemente os músculos com apenas uns poucos movimentos além dos exigidos pela moderna vida sedentária, em contraste com a dos que se consagram regular e conscientemente a algum esporte, por exemplo. Embora ainda não seja de domínio amplo, o exercício de toda arte é, ao contrário do que ainda se crê, a adoção de certo grau de disciplina. Na música, atividade em princípio auditiva, além do discernimento de sons estimula-se a coordenação motora em todos os níveis e, no caso dos instrumentos de sopro, entre os quais a voz, é vital para todo o trato respiratório, sem falar no aparelho fonador. Como toda arte, em suma, promove um maior auto-conhecimento, instrumento precioso em tempos como o nosso em que o individualismo não passa de escudo empedernido para as invectivas de um meio em extremo insidioso.
Portanto, alegar falta de tempo para realizar algo tão importante para si é como dar tiro no próprio pé. O mesmo se diga da impressão de não se possuir talento suficiente para a música, de não se ter ouvido: esse é um triste sintoma da falta de auto-observação, pois todos nós falamos, entendemos o que o outro fala distinguindo, inclusive, os diferentes modos de o fazermos, os sotaques: a linguagem falada, antes de mais, é um tipo de música, de extrema complexidade, inclusive. Já somos músicos desde o berço e não nos damos conta. O instrumento, a voz, que não ocupa espaço extra nos nossos já acanhados lares e do qual possuímos substancial domínio. Para complementar, canto é, em geral, partilhado, digo, é praticado em grupo, circunstância excelente para o exercício consciencioso da condição gregária de nós humanos, progressivamente distorcida, amarfanhada ao longo desta interminável era individualista. Enfim, faça música; na falta de outro instrumento, cante; e torne-se mais sociável, mais consciente de si, auto-confiante, em suma, mais inteligente, proporcionando a quem o escutar benefícios equivalentes!
Neste ponto o leitor atento pode começar a rever de memória todas as pessoas que conhece e então encontrar aquele músico amigo, sujeito desligado de tudo exceto do seu instrumento, desempenho qustionável na escola, magrelo e de pouca ou desajeitada conversação, mas de presença imprescindível nas festas, onde rouba as atenções (em especial as femininas), mesmo estando quieto num canto, atendendo a pedidos sem fim das ouvintes incansáveis: um personagem assim leva à suspeita de que a ciência cochilou durante a pesquisa (ou seria o show?) e de que o autor aqui exagera no seu convite. Para finalizar, entretanto, peço a quem se dá a tais considerações que não se precipite e pondere um pouco mais, em especial se a música não é um de suas atividades preferidas: é possível que, na verdade, seja você quem não está alcançando o tal amigo...
Waldemar Reis
A edição de agosto último da revista 'Superinteressante' - conhecida divulgadora de ciência e tecnologia - traz reportagem a um tempo lisonjeira e desconcertante sobre música. De um lado, mostra que a divina arte está presente, sem exceção, em todo canto do planeta e enumera alguns de seus efeitos (todos observados e comprovados como manda o figurino científico, digo, valendo-se de medições exaustivas), entre os quais o aumento significativo de sinapses (o nome dado pelos cientistas às conexões de neurônios), o que, trocando-se em miúdos, faz do usuário e, mais ainda, do praticante de música pessoas cujas massas encefálicas estão aptas a realizar, com grande rapidez, número maior de operações que as demais. Sim, parece que músicos e seus ouvintes regulares são de fato muito inteligentes, ou assim querem crer os pesquisadores! Por outro lado, após esse caprichado lustro nos nossos egos, a matéria não pode deixar de puxar o tapete, quando informa que a utilidade da música, infelizmente, ainda é por completo desconhecida, em resumo, ela não serviria para nada. Ora, de tudo quanto até aqui se disse, parece óbvio concluir que, se puxaram algum tapete, esse foi o da própria ciência, pois a música termina servindo, se não para outra coisa, ao menos para aumentar a inteligência!
Uma abertura assim deixa claro que toda esta conversa tem por alvo levar, no mínimo, a um maior consumo de música, não bastassem as pilhas de cds e dvds, as trilhas sonoras de novelas, filmes, publicidade, e as horas incontáveis nas filas à entrada dos concertos que são parte da vida de qualquer um. No mundo moderno, se depender do volume musical despejado em nossos ouvidos a todo instante, antes de mais inteligentes, tendemos mesmo é a ficar mais loucos, em especial se considerarmos o aspecto qualidade.
Não, não se vai desfiar aqui um receituário estético, pois isso é, a despeito do quanto se diga e se queira provar, uma questão pessoal. Cada qual sabe o que quer e pode pôr para dentro de casa ou das orelhas (pois agora tudo tem de vir com bula, embora quase sempre em tipos praticamente ilegíveis, é bem verdade)! E qualquer gênero de arte, não apenas a música, tem seus representantes mais e menos nobres, fato de conhecimento universal. O objetivo aqui, portanto é outro: nada de crítica, de censura, nada de mais estímulo ao desbragado consumo já existente.
Trata-se, em suma, de convite à produção. Sim, a passar de consumidor a produtor de música. De especial, na convocação, o seu caráter irrecusável, e para tanto espero contar com um mínimo de sagacidade, prometida na ciência, propiciada pela imersão musical a que venho me submetendo por toda a vida. Tamanho cuidado tem justificativa: um sem número de objeções ostentadas por quem, em última análise, ainda não rompeu com a inércia de ser somente ouvinte. Estas, de modo geral, têm aparência convincente e entre as mais comuns está, em primeiro lugar, a falta de tempo; depois vem a dificuldade presumida na aprendizagem da música, o questionamento da própria aptidão e, mais para o fim da interminável lista, o fato de alguns, de modo circunstancial e descompromissado, já fazerem música (todos temos nossos momentos de karaokê, de rasqueado, de caixa de fósforo).
Dessas possíveis recusas, a mais forte - por incrível que pareça - é a derradeira, pois, no caso, se está, bem ou mal, na posição de músico - daquele que a produz - e assim incrementando as próprias ligações neuronais em escala maior do que quem apenas escuta. Entretanto, essa prática não difere muito daquela de quem acha que exercita convenientemente os músculos com apenas uns poucos movimentos além dos exigidos pela moderna vida sedentária, em contraste com a dos que se consagram regular e conscientemente a algum esporte, por exemplo. Embora ainda não seja de domínio amplo, o exercício de toda arte é, ao contrário do que ainda se crê, a adoção de certo grau de disciplina. Na música, atividade em princípio auditiva, além do discernimento de sons estimula-se a coordenação motora em todos os níveis e, no caso dos instrumentos de sopro, entre os quais a voz, é vital para todo o trato respiratório, sem falar no aparelho fonador. Como toda arte, em suma, promove um maior auto-conhecimento, instrumento precioso em tempos como o nosso em que o individualismo não passa de escudo empedernido para as invectivas de um meio em extremo insidioso.
Portanto, alegar falta de tempo para realizar algo tão importante para si é como dar tiro no próprio pé. O mesmo se diga da impressão de não se possuir talento suficiente para a música, de não se ter ouvido: esse é um triste sintoma da falta de auto-observação, pois todos nós falamos, entendemos o que o outro fala distinguindo, inclusive, os diferentes modos de o fazermos, os sotaques: a linguagem falada, antes de mais, é um tipo de música, de extrema complexidade, inclusive. Já somos músicos desde o berço e não nos damos conta. O instrumento, a voz, que não ocupa espaço extra nos nossos já acanhados lares e do qual possuímos substancial domínio. Para complementar, canto é, em geral, partilhado, digo, é praticado em grupo, circunstância excelente para o exercício consciencioso da condição gregária de nós humanos, progressivamente distorcida, amarfanhada ao longo desta interminável era individualista. Enfim, faça música; na falta de outro instrumento, cante; e torne-se mais sociável, mais consciente de si, auto-confiante, em suma, mais inteligente, proporcionando a quem o escutar benefícios equivalentes!
Neste ponto o leitor atento pode começar a rever de memória todas as pessoas que conhece e então encontrar aquele músico amigo, sujeito desligado de tudo exceto do seu instrumento, desempenho qustionável na escola, magrelo e de pouca ou desajeitada conversação, mas de presença imprescindível nas festas, onde rouba as atenções (em especial as femininas), mesmo estando quieto num canto, atendendo a pedidos sem fim das ouvintes incansáveis: um personagem assim leva à suspeita de que a ciência cochilou durante a pesquisa (ou seria o show?) e de que o autor aqui exagera no seu convite. Para finalizar, entretanto, peço a quem se dá a tais considerações que não se precipite e pondere um pouco mais, em especial se a música não é um de suas atividades preferidas: é possível que, na verdade, seja você quem não está alcançando o tal amigo...
Waldemar Reis
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