sexta-feira, setembro 24, 2004

Casuísmo mundificado em Gracián

Gracián não foi o primeiro a me alertar para o fato, pois é de amplo domínio, esquecido ou desdenhado apenas por incautos. Em seu opúsculo em prol da prudência - que também chamou de oráculo - a matéria retorna como que em ciclos, envolta em roupagens diversas ou subordinada a um ou outro dos tópicos principais da obra. É resumível numa palavra: inveja, assunto de presença insidiosa nas vidas de todos. Atido copiosamente ao senso comum, decerto não traz ali - e porventura nem se o quisesse - maiores novidades o conceito, embora fascine a artesania perifrásica com que o mais das vezes é posto em foco: em virtude disso, a cada aparição é como se o vemos por um lado até aí desconhecido, despertando a surpresa do inusitado.

Por certo em virtude da diversidade conflitante do gosto geral - em grande parte parecendo-me insossa futilidade ou autêntica loucura - foi que me dei conta tão tardiamente de a inveja acossar apenas no tocante àquilo de que mais se gosta! Até aí, nada de novo, suficiente é consultar o mais breve dicionário para constatá-lo. Quanta perversidade, no entanto! Não fosse o autor desautorizar de modo explícito o paradoxo, o qual define como "um tipo de engano que parece plausível a princípio e nos surpreende com sua novidade picante" e como algo que "decreta fraqueza de discernimento e falta de prudência", desaconselhando-o particularmente quando se o utiliza para fugir ao vulgar, sua finura conceptista parecer-nos-ia flertar permissivamente com o instrumento consagrado pelo eleata Zenão.

É paradoxal a inveja: conclusão obrigatória ao término da leitura das sucessivas exposições desse sentimento no seu oráculo, apesar das objeções de Gracián às antinomias. Aliada às evidências da constância no quotidiano universal e do esforço habitualmente subentendido na iniciativa de preveni-la ou de esquivá-la, a conclusão acima acarreta outra: o vertiginoso pendor humano para conviver com o disparate. E, em assim o sendo, é naturalmente perversa a inveja, visto que oblitera, no todo ou em parte, o desfrute do bem, transtornando-o ou transfigurando-o numa sensação de mal.

De mecânica conhecida, não abole em absoluto a noção de bom em quem a nutre. Caso o fizesse não apresentaria contradição, sendo antes sorte de bênção, de bálsamo, poupando sua vítima, exclusivamente confinada ao reino maligno, do cotejo que a faria preferir estar no reino oposto. Sua malignidade está em exercer-se a plenos sentidos, a condição de excelente discernimento de joio e trigo e, o pior, na certeza de se estar em desfavor.

Fato: é profunda a dificuldade de julgar a inveja, em especial quando se é alvo dela. Tampouco suas vítimas estão aptas a fazê-lo, ou se encontrariam a um passo da cura: do contrário, sentem-se tomadas de legítima revolta ao experimentá-la, da qual não lhes ocorre de pronto fugir. É claro, há invejas injustificáveis, essas originadas na falta de discernimento, quando há desejo mórbido de possuir o que se tem de sobejo. Tolerá-las é fonte de confusão, como quando se admite haver ao menos ponta de despeito em todo sentimento de admiração.

Refiro-me não a estas últimas, mas às nutridas em completa lucidez. Gracián nos dá um exemplo de especial crueldade: "espere pouco dos que têm defeitos físicos, pois gostam de se vingar da natureza por tê-los honrado tão pouco". Tendo-se em conta a finalidade da obra em foco (a de oriente em meio ao comércio humano) e o lugar e o tempo em que se escreveu (Espanha em meados do século XVII), ainda que perversa, é no mínimo atilada a observação. Permito-me esclarecer um pouco mais: não obstante sua condição clerical, da qual se veria constrangido a exortar os desafortunados à tolerância, quando não a regozijarem-se com os reveses (pois nestes supõe a igreja promessa de bem-aventurança post mortem), o autor toma direção contrária, por decerto dar ouvidos antes às evidências que às presunções santificantes da fé católica, uma vez a realidade desses infelizes a essa época ser eivada de sofrimentos, o principal dos quais a acentuada dependência do favor geral, fonte a alimentar temperamentos acerbos.

Por essa e por outras tantas tiradas análogas o realismo do jesuíta, assombroso, poderia ser dito sem exagero como espécie de maquiavelismo plebeu, uma vez dirigido não a déspotas, como o do florentino, mas ao vulgo. Pondo de lado a severidade disciplinar de sua ordem, a qual proíbe exposições públicas dos seus membros, não era outro o motivo, segundo parece, para que assinasse seus trabalhos com pseudônimo e para que alguns tivessem condenada a publicação, sujeitando-o às sanções costumeiras até morrer. Doutro lado, isto faz de Gracián produto legítimo do iluminismo humanista - que elevou a circunspecto paroxismo - cultivado pelos sectários de Inácio de Loyola, esse cuja práxis tanta celeuma provocou ao longo da colonização ibérica das Américas.

Seu senso de realidade um tanto ácido aproxima-se deste utilizado na prática psicanalítica hodierna, sorte de medicina cuja sabedoria retira os pensos de chagas abertas, arejando-as em detrimento do pejo universal de tê-las à vista. Mas não o faz sem antes ter à mão unturas eficazes no avio da cura, de todo distintas das prescritas na fé. Aos defeituosos, bem como aos sãos, nem resignação nem a incerta recompensa póstuma por se terem resignado: ministra-lhes Gracián medicamento dos mais empregados na atualidade, distribuindo-o racionalmente nas composições de múltiplos ítens de sua botica de prudência, a auto-estima. Todos estamos informados dos prodígios desse fármaco ancestral, em uso na produção de verdadeiros heróis na superação das perversidades do fado e que, embora faltos de membros e órgãos ou das funções destes, são recebidos em Olimpia como os que a excelência aquinhoou. Muito se deve dessa transformação às condições propiciadas pelas técnica e indústria advindas no mundo atual, conferindo significativa ampliação das atividades independentes dos portadores de imperfeições, determinante direto do apreço pessoal.

A inveja, mostra o jesuíta, mesmo nutrida com motivos justos (como os aleijões), é de grande poder infeccioso: qual faca de dois gumes, faz vítimas somente quando, instalando-se em alguém, atinge também um alvo ao menos. Até aqui discorreu-se sobre como frei Baltasar socorre as primeiras; entretanto, sabendo ele da inutilidade das curas isoladas nesse caso, trata de acudir também a outra parte.

Saca, portanto, do seu alforje filosofal, de primeiro, a indiferença, medicina em verdade preventiva, de pouca valia quando já se foi atingido pelo mal - adverte-nos. Em seguida mostra, sem traço de afetação, outro frasco, e o apresenta como o continente de elixir definitivo, eficiente na profilaxia tanto quanto na debelação das crises agudas e dos estados crônicos nos tocados pela inveja alheia. Da naturalidade com que nos exibe o composto depreende-se a sua certeza de o conhecermos suficientemente, mas em vista do pasmo geral, recita um a um os componentes: generosidade, o principal, à qual se adicionam em diversas proporções complacência e, naturalmente, amor-próprio, ali constituído de mérito e talento. Já advertido de nossa fraca memória, o frade finaliza enunciando os efeitos colaterais, infensos apenas aos verdadeiros enfermos da inveja, esses dos quais ela emana, para quem a mistura tem o efeito dum dobre de finados.

De curioso nos tratamentos é se fazerem ambos com o uso da auto-estima que, enquanto agente no invejado, é nefasta para o invejoso que não a ingeriu ainda. De efeito miraculoso também, se ministrada apenas neste último, poupa igualmente o outro dos sintomas malsãos. Conceda-se uma distinção crucial: a estima de si indicada aos invejosos não é a mesma prescrita aos invejados, uma vez a dos primeiros ter de forjar-se em puras vontade e imaginação em continuado esforço de negar a evidência decepcionante, enquanto a dos derradeiros tem o frescor da realidade ditosa, dispensando artifícios quaisquer para se hipostasiar. Eis segredo somente acessível aos versados na alquimia sútil do espírito!

Nada mais natural do que o olho desconfiado seguido de explosão biliar do catolicismo em face das práticas desse físico de almas, seu sectário. Semelhante fúria se justifica somente nos cria-cobras confiados em pedagogia de falso liberalismo cujos fundamentos são a inépcia e o comodismo dissoluto. Picada pelos reformismos de meados do século XVI, à fé católica houve por bem tolerar o inaciano, haja vista o luterano ter-se afastado por conta própria. Via-se então, cerca de cem anos depois, desafiada por outra renovação, desta feita no seio daquele que escolheu indulgenciar, pondo em xeque um dos esteios católicos, terceira das virtudes teologais, a caridade, o que, por força da fraca engenharia dos alicerces religiosos, debilita os restantes.

Atropelando Francisco de Assis e tantos penitentes como os seus confrades jesuítas amargando febres e silvícolas num Mundo Novo, Lourenço - firma temporal do monge Baltasar, audaciosa o suficiente para se apresentar com o seu próprio sobrenome - desdenha dessa forma transfigurada de amor ao próximo (a piedade, sentimento que ensina sorte de dolorosa mescla de sujeito e objeto) subjazendo ao ato caridoso, dizendo: "não se tornar infeliz por compaixão aos infelizes". Apenas Borges, no fragmento final dum seu evangelho apócrifo, faria possível concisão maior: "felizes os felizes"!

Tanto, não obstante, não diz tudo. Sobreviver à inveja seria tão-só uma etapa - grandemente compreensiva, é verdade - na obtenção da felicidade, cujos postulantes deveriam gozar também de plenas discrição, perspicácia, sensibilidade, sensatez, coragem, cautela, honestidade, verdade, prudência, entre outros atributos numa cadeia de virtudes de que é merecedor exclusivo o 'herói universal' (para certo despeito do Zaratustra e para o deleite de Schopenhauer, Godwin e Feuerbach), saudável e sábio como só um santo pode ser. Um santo do século no século. Assim seja!

Waldemar Reis - 24/09/04

Nenhum comentário:


Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported License