terça-feira, dezembro 30, 2008

Desvendando o Plano Inteligente

Deus já foi mais simples. É o que ensina a História. Ao menos podíamos imaginá-Lo a partir do que víamos: os bichos, as árvores, o céu, a terra. Há quem sustente, entretanto, que nesse período já tínhamos conhecimento, por certo vago, desse Deus único, primeiro, criador de todas as coisas (inclusive dos deuses imagináveis ou visíveis), mas teríamos preferido deixá-Lo lá, para onde foi depois da faina da Criação. Decerto o fizemos por já intuirmos as dificuldades de concebê-Lo, destas a mais evidente aquela dizendo respeito à Sua origem: os outros, os deuses concebíveis, Seus subordinados, conformavam-se melhor à nossa exigente maneira de imaginá-los, para a qual tudo tem de ter um ponto inicial.
Somos até capazes de imaginar coisas sem fim, como o tempo, por exemplo, bastando associar certos sinais de sua passagem, digamos, os dias, aos dedos das mãos, repetindo o processo sempre que acabarem os dedos contados, ou mesmo associá-los à série numeral, da qual não achamos também o elemento último. Se admitimos que um dia tudo pode acabar, o vazio, além do tempo, recusar-se-á a sair da cena final que imaginarmos. Encontramos problemas, entretanto, para pensar algo sem começo: isto sempre começará em outra coisa, esta numa terceira, a terceira numa quarta e assim por diante; e no momento de pôr termo a esse processo, no momento de apontar a primeira de todas as coisas, o pensamento não hesita e pergunta: como isto teria começado? Como se vê, a despeito de descômoda para o pensamento a hipótese de algo não ter tido um começo, a tentativa de resolvê-la achando-lhe um começo termina por criar outra descomodidade, a de não encontrar um começo satisfatório.
Os primeiros visitadores do Deus único e primeiro não pareciam preocupar-se com tanto. Invocavam-No sem qualquer interesse por sua história e só os descendentes muito tardios destes viríamos acordar para o problema. Jamais o resolveríamos, embora as tentativas nos tenham rendido, entre outras coisas, a ciência, mas também os dogmas. Estes últimos dizem respeito aos limites do quanto é possível dizermos de Deus e passam a incomodar quando usados pela estreiteza de julgamento para coibir iniciativas como a da ciência. Já esta quer somente observar o mundo: admite que tenha sido criado - não pode escapar de conceber-lhe um princípio - e mesmo não a incomoda a idéia de um Criador, mas sua forma de observar parece frutificar sem mesmo tê-Lo como hipótese, segundo o afirmou certo sábio francês.
O bom cientista, já o sabia o referido sábio, não deve nem pode intrometer-se na alçada dos dogmas: por referirem limitações do pensamento, idéias imunes a qualquer esforço especulativo, sequer se oferecem à contestação (pois como contestar o impensável?). Os dogmas são como portais ao pé de que se vislumbra paisagem além, sendo embora impossível esboçar ao menos um passo nessa direção. Dogmas estão desde sempre em nossas mentes, pode dizer-se que os conhecemos desde quando nascemos e só quando inteirados de que pensamos tomamos ciência deles. No caso de Deus, os dogmas a seu respeito são como os axiomas de qualquer geometria: ou os admitimos como nos são dados, ou não traçamos linha nenhuma.
Isto equivale a dizer que nossa idéia de Deus, o primeiro e único, nasce conosco por inteiro, completa e, no entanto, inverificável. Outra forma de concebê-Lo não temos senão admitindo-O como inconcebível, impensável. É-nos igualmente impossível negá-Lo, ao menos enquanto princípio, enquanto origem, pois é preciso pensarmos algum, alguma, de que viria o quanto nos originou. Além disso, tudo mais a dizer-se d’Ele é incerto e, sobretudo, blasfemo. A onipotência, por exemplo: nada garante Seu poder além do fiat, que pode ter sido mero pontapé de um processo potencialmente imprevisível. Por isso, talvez, tenha-se afastado, deixando aos sub-deuses, mais habituados aos reveses do mundo, o cuidado para com os homens, indivíduos esses muito impressionáveis com a própria impotência. Coisa semelhante se diga da onisciência e da onipresença, caso as possuísse de fato: decerto nos daria maior proteção, atenderia com inteira presteza aos nossos chamados, pois teria idéia precisa e imediata de nossas aflições.
Afirmar Sua inteira perfeição, então, deve soar-Lhe como ácida ironia, em vista de o fazermos por contraste com nossa admitida condição imperfeita: como ter-nos-ia criado assim tão cheios de defeitos, de carências? É dessa maneira, segundo nos conta Feuerbach, que os kamchadalos, povo decerto já extinto da região a nordeste da Sibéria, o Kamchaca, O trataram: Kutka, nome que Lhe deram naqueles confins, só poderia mesmo ser estulto por tê-los posto num mundo de meses gélidos e montanhas intransponíveis. E estultice, para bom entendedor, é eufemismo por trás do qual bondosamente os kamchadalos escondiam atributo ainda menos apreciável, a maldade. Afora o de iniciador da criação, por conseguinte, as restantes qualidades que - até numa atitude sincera - cremos ver n’Ele terminam por transformar-se em graves acusações. Para quem O ama incondicionalmente, portanto, melhor é concebê-Lo assim, quase inqualificável.
A verve do cientista não poderia permitir-lhe que se imiscuísse em querela dessa monta, se de querela é possível chamá-la. A empresa de compreender Deus, como é evidente, em si mesma é paralisante. Passo nenhum pode dar-se nesse terreno sem risco de vertigens abismais. Eis as razões de a ciência ter-se voltado para os objetos dos sentidos imediatos, deixando Deus em Seu retiro previdente. Mas não se pense que a ciência, embora não O pressupondo em suas observações, não queira chegar a Ele: tudo em seu modo de agir o demonstra, pois tem por meta o achamento do princípio universal, o qual quase involuntariamente tendemos a chamar de Deus. À diferença da atitude religiosa, entretanto, a científica parece desprovida da mesma pressa, como se quisesse construir sua opinião sem prejulgamentos, a partir de somente o que pode sentir, para estar munida, quando diante d’Ele estiver, dos argumentos bastantes para o debate fluido, sem as arestas das emoções.
E não se pense também que em sua faina prescinda o cientista de emocionar-se. Seria uma tolice caso o admitisse, pois sabe que as emoções são tudo com que conta para investigar o mundo. As emoções são como sentidos internos voltados para o quanto os outros, externos, colhem no entorno. As emoções são como sinais indicando ser o que percebemos bom ou não. E de bem em bem desvelamos os caminhos seguros a serem trilhados. Seja qual for o seu apuro, a ciência é um tecido de bens cuja utilidade primeira é prover-nos da permanência, é permitir-nos durar. Pode tratar-se de mera ilusão, advertem uns obstinados observadores dos atributos de Deus, pode ser que duremos por obra e graça d’Ele somente, e arrolam como prova nossa própria transitoriedade: seja qual for o esforço, seja qual for o refino da ciência, um dia desaparecemos todos. Como se disse há pouco, o cientista não pode também dar ouvidos a semelhante cantilena e assim age como se dependesse apenas de si permanecer sobre a terra. Mesmo porque, caso tenha razão quem o admoesta desse modo, é na própria autonomia que em aparência quer Deus que ele acredite.
A despeito de tanto cuidado, de trilhar seu caminho no encalço do bem, não caminha a ciência por linhas retas, sequer por curvas ou outras quaisquer de alguma previsibilidade. A incerteza também a persegue, sendo possível vê-la mover-se em ziguezague, retroceder e até deter-se por lapsos consideráveis. Às vezes lhe passa pela cabeça ser o mundo interminável, às vezes está certa de sua finitude. Às vezes a paralisa uma dessas considerações, às vezes parece que a excitam quase ao delírio. Entretanto o bom cientista sabe ser este um falso problema: seja qual for a grandeza do mundo, não há um fim possível para a empresa de conhecê-lo, já que isto é tarefa exclusivamente relacional, tarefa de ligar uma coisa com todas e cada uma das demais, bastando ter alguém uma rasa idéia de como se processam as permutações para abrir mão de sequer começar o enunciado do numeral em que a operação resultará. Observando desse viés, percebe o cientista ter trabalho para sempre. Por outro lado, sabe que é possível pôr um fim em sua labuta e esse ponto final se chama Deus, o qual não estaria somente na ponta extrema de uma caminhada imensurável: a qualquer momento pode a ciência dar por terminada sua missão, bastando para tanto usar o nome d’Ele para expressar a causa de seja o que for.
Nesse ponto parece extinguir-se toda a curiosidade que à ciência motivou. Para os bons conhecedores do gênero humano, nada obstante, ocorreria apenas uma mudança de objeto da compulsão do saber. Toda a ciência tomaria então o nome de Psicologia de Deus, já havendo, inclusive, quem a pratique, em grande parte do viés da religião, os restantes desde suas cátedras científicas. Acreditam estes permanecer nos domínios naturais da ciência, mas é bastante possuir-se razoável senso de observação para concluir, como aqui se demonstra, que andam já pelo reino do sobrenatural. Se inquiridos, rejeitarão qualificar o que fazem de anticientífico e mesmo de paracientífico ou de misticismo. Nem quando apresentados os sinais inequívocos de sua inclinação seriam capazes de reconhecê-los como próprios de uma Psicologia do Divino, ciência futura da qual talvez não possuamos ainda as bases suficientes para desenvolvê-la a contento. Por ’bases’ tem-se aqui o tipo de conhecimento cuja verificação apresente consistência mínima, digo, cuja verificação não redunde quase de imediato em paradoxos, em contradições e outros impeditivos paralisantes da ação do pensamento.
Passando ao largo do redundante Criacionismo, espécie de investida de maus leitores das fábulas bíblicas contra o ainda pobre mas consistente acervo da biologia depois de Darwin, ao introduzir a Psicologia do Divino tenho em mente uma corrente mais sutil de pensamento, quiçá sorte de polimento dado pelos criacionistas às suas elucubrações de modo a torná-las menos repulsivas aos critérios da ciência. Em tese consiste em afirmar a existência de um Plano Inteligente, à primeira vista parecendo designar a expressão tão-só substituto menos prolixo e de apelo metafórico mais contundente para Sistema de Propriedades Notáveis, como pareceria mais ao gosto científico chamar o mundo. Inteligência, em primeiro lugar, é apenas o nome da medida - demasiado imprecisa, como suas semelhantes - utilizada pelo homem para avaliar a eficiência da sua e da ação de outros seres no mundo. Assim de princípio, observado sem a malícia do polemista, o emprego de ’Inteligência’ na expressão mostra-se em perfeita conformidade com os pressupostos científicos. Mas basta acrescentar que inteligente, segundo o uso corrente do termo, é qualificativo aplicável somente a algum sujeito, este entendido como indivíduo dotado de vontade própria e capacitado a responder pelos próprios atos, esteja ou não submetido a um outro: isto feito, configura-se o problema.
Acompanhado como está na expressão por ’Plano’, o termo ’Inteligência’ não deixa dúvida de que quem utiliza ambos pressupõe um interlocutor, o qual poderia em tese ser inquirido acerca do que planejou. É claro, é possível ainda conservar a atitude científica diante da inteligência de tal plano e continuar reservando-se o prazer de decifrá-lo sem necessário ser lançar mão da menor pista fornecida por quem o elaborou. E pelo jeito é assim que devem proceder os investigadores do Plano Inteligente, ou seremos levados a crer que gozam de privilégio não estendido a nós outros, os menos do que meros mortais. Teriam eles de fato acesso a um canal privilegiado de contato com Ele? Em face do que afirmam só nos resta permanecer na dúvida, pois entre as razões apresentadas para o estabelecimento do novo viés estão, à primeira vista, algumas observações, todas muito criteriosas, do funcionamento geral da vida. Revelariam elas sistemas cuja forma atual resiste à interpretação evolucionista segundo a preconizou Darwin, a saber, que derivariam uns organismos de outros sutil e paulatinamente em resposta às exigências do meio. Tais sistemas só poderiam advir por inteiro e entre eles está o DNA, a essência da vida.
O próprio Darwin, até onde sei, teria considerado a possibilidade de deparar-se com mistérios desse tipo. Alguém ou ele mesmo os chamou de Complexidades Irredutíveis, indicando que não poderiam aparecer senão completos e não lentamente derivados de sistemas quaisquer. Uma visão apressada do quadro induz de imediato à consideração de que também no tempo de Darwin a mentalidade comum relutou em aceitar que nos parecemos com os símios e que outrora a eles nos assemelhamos ainda mais. Foram precisos século e meio de escavações incansáveis para hoje, com o endosso da análise dos genes, aceitarmos o parentesco. A solução estava em encontrar elos a porem em contato pontos descontínuos de uma presumida cadeia que, a despeito de ainda muito incompleta, é tida por prova suficiente de sermos de fato mais próximos dos macacos do que de qualquer outro animal. Mas o Plano Inteligente vai além, afirmando: por mais notáveis que sejam as propriedades do sistema, a pressuposta forma de este operar, com o uso do acaso, não seria capaz de produzir Complexidades Irredutíveis como o DNA ou o flagelo inusitado de uma determinada bactéria.
Neste ponto, ao lado de ’Plano’, ’Inteligente’, ’Complexidade’ e ’Irredutível’, entra em cena ’Acaso’. O acaso, então, não daria origem a Complexidades Irredutíveis. Um documentário sobre o tema ilustra muito bem o problema contrastando a rocha talhada ao acaso em contigüidade com as quatro cabeças dos presidentes norte-americanos esculpidas na mesma matéria, ou a ação caotizante do mar sobre uma frase rasgada na areia da praia: ventos e movimentos tectônicos não esculpiriam bustos de humanos nem frases seriam escritas pelo mar. A ação de uma inteligência - mais ainda, de uma vontade - torna-se clara nos contrastes. A biologia do Plano Inteligente leva-nos a concluir que a Criação, se obra genuína de Deus, consumou-se em ao menos duas partes após o fiat: para a primeira teria concorrido o acaso e em seguida, depois de aleatoriamente moldadas as montanhas, de aplainadas as praias pela água, retornaria Ele à cena resultante e, considerando-a palco ideal para o que concebera então, entregar-se-ia a modelar as Complexidades Irredutíveis. Para o aficcionado dos jogos de simulação do Will Wright eu diria sim, é assim que se joga Sim City, Sim Earth ou Sim Life, embora não seja certo que esse autor buscou no novo viés da biologia sua inspiração. Acho mesmo possível ter ocorrido o contrário.
Escuto, depois desse pensar, uma voz conhecida falando-me desde a imaginação, adversando com a consideração de não haver necessidade de invocar diretamente Deus no aparecimento da vida, pois a vida como a conhecemos, certamente obra de uma inteligência, pode dever-se, por exemplo, a ente igualmente criado, quiçá aparecido, sim, das operações do acaso... Embora canhestra, a hipótese merece réplica, como a de que nela mesma já se considerou a ação de um Criador Primeiro, antecessor desse criador da vida, ainda que este tenha sido criado pelo Acaso. E investigações nessa direção, já experimentamos, são fontes de vertigens e paralisações. Além disso, tal ser criado - e nosso suposto criador - estaria para nós no altar reservado ao que chamaríamos de Deus. Seja, enfim, quem tenha sido o planejador da vida, ele teria trabalhado, segundo a biologia do Plano Inteligente, a partir de coisas já existentes. O acaso lhe teria fornecido a matéria sobre que plasmaria sua inteligência. Em suma, traçar do mundo físico a evolução levar-nos-ia à sua origem simples e à sua transformação paulatina e aleatória no que hoje contemplamos. Já o caso da vida seria outro, daríamos com o seu artífice, a quem outrossim pouco teríamos a perguntar, visto já sabermos o essencial - as moléculas, o modo de agruparem-se e como se replicam. Ir além disso seria arriscar-se a ter como resposta aquele gênero do consideração que ensaiam os artistas fazer quando inquiridos sobre os motivos para terem realizada sua obra: "fi-lo porque o quis".
Como os biólogos do Plano Inteligente, também os físicos, os químicos, os geólogos e, creio, até os evolucionistas empedernidos têm de eventualmente ceder ao puro êxtase em face das maravilhas que desvendam. Em meio às metáforas de que se valem para exprimi-lo estão certamente ’Plano’, ’Inteligência’ e, talvez a mais hiperbólica, ’Autor’. Isto se deve à inevitabilidade da idéia de um princípio, de um Deus único que, nada obstante aperfeiçoada nos derradeiros milênios, não logrou ainda a forma adequada para sem atritos introduzir-se no discurso científico. Entretanto nada impede que um investigador do mundo a introduza, particularmente nos momentos de desfrute, quando pausa seu trabalho e se permite mais amplamente contemplá-lo, não raro suscitando hipérboles sintomáticas do seu prazer com o próprio ofício. Isto não significa também que a ciência não se construa com metáforas. Para a ciência não há como escapar destas, pois consistem na própria linguagem: metáforas relacionam coisas distantes entre si - no espaço, no tempo ou na constituição - e se validam por haver em comum no que relacionam o suficiente para o estabelecimento de tal relação (devemos a Borges, lembremos, essa visão simplista e eficiente do conceito). Mas do viés científico a metáfora só se consolida quando, mesmo hiperbólica, é amparada por outras metáforas menos ambiciosas e cujas partes guardam assemelhamento maior. De hábito reservam-se as hipérboles para as expressões puramente emocionais.
Mas há hiperbolismo em ver na vida um plano inteligente? Creio que mais de um, deles o primeiro a inferência imediata de haver um autor. Depois, o que seria a inteligência? Como se mostrou, uma medida da ação eficiente do sujeito no mundo. Assim, se dum lado é plausível a atribuição de inteligência ao criador da vida, pois ele teria agido como todos os sujeitos têm de agir, ou seja, transmutando a matéria com alguma finalidade, doutro lado não me parece adequado atribuí-la a quem criou a matéria com que depois é criada a vida, não ao menos nas condições iniciais que costuma supor a religião para o seu trabalho, isto é, o nada. É claro: se inteligência é termo designando a capacidade de operar após o advento do mundo, seria lícito atribuí-la a quem o sacou quando nada havia? E digo mais: se criar designa mais exatamente trazer à existência, seríamos nós, que apenas juntamos o já existente, criadores? Suponho que sejamos apenas inteligentes - se tanto. Deus, à medida que o intuamos melhor, num tempo muito mais à frente, por certo revelar-se-á detentor de faculdades ainda mais impressionantes do que a da inteligência, faculdades quiçá para sempre incogitáveis, como Ele próprio o é, por nosso singelo aparato cerebral.
Por fim, ’Plano’ é o termo que vem lacrar a estreita relação dessa nova biologia com o nem tão antigo Criacionismo. Associado à impossibilidade de reduzir certas estruturas complexas a partes evolvendo, tem-se panorama decerto o mais terrífico para o âmbito do conhecimento em geral e da ciência natural em particular: entes postados cada qual no seu nicho de espaço e tempo reproduzindo-se com variações mínimas no universo de cada espécie sem guardar com os entes de outras espécies qualquer significativa relação. Em vista da irredutível complexidade dos seus respectivos genes e a despeito das assemelhações, sequer homens e chimpanzés teriam derivado de um mesmo ancestral. Nesse passo teríamos de retomar a hipótese de geração espontânea e as demonstrações de Berkeley e Malebranche, até as assimilarmos completamente, voltariam a assombrar o cotidiano universal. Cairia por terra o pressuposto maior da filosofia que, de ’tudo é um’ (segundo interpretou Nietzche a máxima de Thales), teria de enunciar-se ’cada coisa é uma’ (ou melhor, ’cada coisa é cada coisa’): a categoria universal, tão discutida na Metafísica, seria posta de lado, bem como a ciência na forma que a cultivamos, doravante voltada para o particular. Borges rir-se-ia sem a costumeira modéstia, pois só o memorioso Funes, de sua invenção, se habilitaria a dar conta de mundo assim diverso, mundo em que a metáfora não passaria de um delírio e onde cada coisa, incomparável a qualquer outra, teria de ter designação exclusiva.
’Plano Inteligente’ a mim parece mescla pouco refletida de conceitos mal aplicados e entendidos. Configura-se como recurso da indústria religiosa tencionando ampliar sua dominação de milênios sobre a ciência, a qual seria, em aparência, infensa às suas ações. Revela-se como sintoma da ignorância dos doutores da religião, que não compreendem o potencial do conceito central em seu poder, o conceito de Deus, incontornável, inevitável, irrecusável e nada obstante imune a toda investida lógica ou experimental visando demonstrar seja o que for a Seu respeito, inclusive a Sua real existência. Do ponto de vista estritamente científico, ’Plano Inteligente’ só pode representar exclamação do gosto do cientista diante do quanto foi possível descobrir. Caso contrário, deve indicar postura presunçosa da ciência, prestes a cruzar os braços até que encontre o suposto responsável pela criação dos objetos de seu estudo. E se alguns desses cientistas já não O encontraram, quando o fizerem, do diálogo entretido é provável constar uma passagem assim: "o que mais querem vocês? já sabem como funciona, já sabem quem fez; agora, por favor, deixem-me em paz!"
Rio, 29 de dezembro de 2008
Waldemar M. Reis

terça-feira, outubro 07, 2008

O mundo acabou?

E nós temendo, faz poucas semanas, uma hipotética hecatombe iniciada no novo acelerador de partículas. Antes fossem fundadas tais premonições. Ao menos seria catástrofe instantânea, diga-se, inteiramente imperceptível, como asseguram os físicos. Um espírito polêmico sentir-se-ia à vontade para perguntar: não teria ela ocorrido de fato e não viveríamos agora no tão sonhado e temido Além?


É impossível responder-lhe com acerto, mas sendo mesmo este o caso, pouco se observa de diferente da vida passada, permanecemos no Purgatório, com a particularidade de alguns de seus aspectos parecerem agora mais veementes: a atmosfera sofre de um certo exagero, com tufões gerando-se em questão de minutos e mantendo-se no ar por dias ou dissolvendo-se logo que transpõem o horizonte, gélidos meios-dias cheios de sol e a bolsa - meu Deus! - a louca bolsa desgrenhando-se em meio à plácida fartura das linhas de montagem e do deslocamento incólume das multidões na densa névoa de Pequim. Sim, continuamos no Purgatório, embora - quem sabe? - tenha-nos mesmo pulverizado a curiosidade da ciência ao produzir mero arremedo do fiat primevo. Continuamos no Purgatório por não existir, talvez, senão Purgatório, misto de abundância - dádiva celeste - e insaciabilidade - sua contrapartida infernal. Talvez seja o caso de o mundo continuar o mesmo depois de acabado (por lhe ser impossível inexistir, segundo afirmou alguma filosofia), apresentando somente uma alteração na intensidade das coisas.


Isto é o suficiente, entretanto, para tirar dos trilhos, além dos cinco básicos, o sexto e mais crucial dos sentidos: o da premonição. E como o provocou uma flutuação quântica, useira e vezeira em inverter a seta do tempo, seus efeitos se fizeram sentir antes mesmo das causas: pressentimos catástrofe, é verdade, mas não a do retorno do mundo ao pó; antevimos a pulverização do quanto pensamos dele, o vasto sistema de valores erguido ao longo dos dois ou três últimos milhares de anos. E então testemunhamos o desvario dessa senhora sobre quem pesou guardar a integridade do castelo de retângulos de papel, discos de metal e cartões em plástico cujo colapso tirou-lhe o tino.


Vendo-a assim, parece não haver dúvidas de que enlouqueceu de vez, mas diante da universal e continuada indiferença para com sua aflição é possível notar um certo exagero em como a demonstra, um tom de encenação (pois mesmo para a loucura são impostos limites). Peregrina nos dias úteis ao redor da Terra que, por girar sem descanso, obriga-a ao cumprimento de jornadas noite adentro, quer, em resumo, cooptar a comoção geral, suscitar o desespero mundial pelo desmoronamento de seu efêmero fortim; quer cumpridos os termos pelos quais nos apalavramos, ver ruir também cada parte do mundo que as peças de seu castelo representam.


Até há pouco não merecia senão a piedade circunstante e por seguidores não tinha mais do que os conhecidos arautos do apocalipse. Mas tamanha é a insistência do desvairado cortejo que se observam, com o passar dos dias, novos adeptos: abandonam seus afazeres para lhe fazerem coro no conhecido bordão com que ora pede, ora suplica, ora exige que tudo pare. Caso sucedam os seus planos, em breve estaremos todos na comitiva e, quem sabe, ajudamo-la a reerguer o edifício de papel, discos metálicos e matéria plástica, recebendo pela tarefa algum soldo, que de pouco ou nada nos servirá até voltarem à ativa engrenagens e arados. Enquanto isso poderemos restaurar outros aspectos saborosos da vida, como a circulação de promessas, essenciais na constituição da certeza de possuirmos algum futuro.


De momento a reconstrução do mundo oferece ainda pouca vantagem e portanto não há motivo para empreender nada. Além da saciação da fome e da sede, o que se promete a quem nos provê do alimento? Muito pouco, avalia-se. Por que? Por tratar-se, ora, de crise, e de crise do essencial, do pressentimento. Em tempos dela todo o mais perde a importância, inclusive o viver! O mecanismo é simples, lógico, fácil de entender: o futuro só existe para quem é capaz de pressenti-lo, mesmo que sem o esperado acerto, não havendo instrumento tão eficaz no estímulo de pressentimentos quanto as promessas que, mesmo insustentáveis e conseqüentemente descumpridas, mantêm sempre aberto o caminho para as cobranças. E cobros de prometidos são exercícios infalíveis da construção do futuro, mesmo sendo ele rancoroso e triste.


Estão em crise nossos futuros por não sermos capazes de concebê-los de outro modo; projetamo-los muito além do que somos capazes de divisar; há mais promessas do que possibilidades de honrá-las. Crise de futuros só se dá no rastro de crise outra, esta mais séria, mais grave e porventura perene, mas constantemente contornada pelo trabalho incansável de legisladores e com freqüência subestimada enquanto não acomete o pressentimento: trata-se de crise da honra mesmo, sustentada em sua latência pelo pendor humano para o ludíbrio, este gerado pela universal propensão para a indolência, que não pode senão ser controlada, jamais extinguida. Em tempo de incêndios como este pouco se obtém no rescaldo, a não ser a certeza resignada de que praticamente nada se queimou, pois nada havia para queimar senão vaidade insustentável, equilibrada sobre esperteza de tipo efêmero, incapaz de manter-nos convencidos da segurança que inspiram os seus cofres de papel. Tempo promissor, sim, embora as dádivas que anuncia não tenham o apelo das antigas.


Parece que a ciência conseguiu mesmo dar fim no mundo - e isto é tão certo quanto é impossível provar o contrário. Em sendo esta a realidade pós-apocalíptica, prova de a destruição do mundo ser espécie de decaimento em outro semelhante e talvez somente mais atroz, não faltará quem lamente a impossibilidade de ele tornar-se nada.


Rio, 07 de outubro de 2008


Waldemar M. Reis

terça-feira, setembro 30, 2008

Fragmentos 'pré-modernos'

A difícil arte da tradução, a lúbrica facilidade da presunção, um texto instigando noutro vernáculo e o impulso de entendê-lo neste que compreendo melhor: os ingredientes de cuja combinação destilaram-se as linhas mais abaixo.


Nada obstante os quase duzentos anos de nascido seu autor, desconcertam pela insistente atualidade, tanto que o inculpam de germinar o redundante existencialismo. Alguns propósitos em aparência o obstinaram, ao menos em certos escritos, como a vertigem da alteridade - artifício visando ao distanciamento esperado naqueles que praticam a ciência, mas empregado com a veemência de quem, por sinceridade, não pôde debruçá-la senão sobre si mesmo - e os heterônimos multiplicando-se ao passo que constatava seus desdobramentos próprios, por cujo intermédio procurava seu espírito amoldar-se às extravagâncias morais daquele tempo.


Em vista disto mesclou em vários de seus trabalhos ficção e filosofia, dispondo as personagens como que num labirinto. Parecia querer tornar o conceito à condição originária, mítica, na qual possuiria a concretude do sentimento. Em Kierkegaard raciocina a comoção, enternece a lógica. E a fé provoca, faz tremer...


Temeu e condenou o fracionamento de seu trabalho, deste em particular, de título insólito, "Ou, ou", cujas partes aqui se lançam no limite do acaso. Mas foi capaz de reconhecer-se como origem e estímulo desse mesmo risco, dado o seu pendor quase irresistível para o aforismo.


A inquieta fraseologia intriga e encanta pelo emprego dos recursos extremos da gramática tendo por intuito evidente fazer cantar a dedução. Utilizaram-se duas versões em inglês, a de David e Lillian Swenson, revisada por Howard A. Johnson, e a de Alastair Hannay.


***


"O que é um poeta? Um infeliz cujo coração abriga dor profunda, mas cujos lábios são capazes de fazer dos gritos e gemidos que por ali passam música arrebatadora. Sua sorte é como a das infelizes vítimas do tirano Faláris, encerradas em touro de latão, lentamente torturadas por fogo constante; seus gritos atingiriam jamais os ouvidos do tirano, nem terror lhe causariam no coração; soariam, quando escutados, qual doce música. E o povo rodeia o poeta dizendo-lhe: ’Canta para nós outra vez’ - o mesmo é dizer-lhe: ’Possam novos tormentos afligir teu espírito, mas que continuem teus lábios como dantes; pois teus gritos somente nos inquietariam, mas a música, ora, a música é deliciosa’. E vêm adiante os críticos, dizendo, ’Perfeito - como tem de ser, segundo as leis da estética’. Agora, entenda-se que o crítico difere do poeta por um fio; falta-lhe tão-só a angústia no coração e música nos lábios. Eu lhes digo: preferível é guardar porcos que me entendam a ser poeta incompreendido.


"... pois antevejo as inquietações e elas teimam em ficar atrás.


"Tenho coragem, acredito, de duvidar de tudo; tenho coragem, creio, para lutar contra tudo; mas não tenho a coragem de nada saber; nem a coragem de ter - de possuir - nada. Lamenta-se que seja o mundo assim prosaico, que não seja a vida como num romance, no qual as oportunidades são sempre favoráveis. Eu lamento não ser a vida um romance com pais desalmados, tritões e gnomos contra que lutar e princesas para libertar. O que são todos esses inimigos comparados às pálidas, exangues e tenazes formas noturnas contra as quais me bato e a que dou vida e substância?


"O que pressagia? O que trará o futuro? Eu não sei, não tenho pressentimento. Quando se lança de algum ponto fixo, segundo sua natureza, vê a aranha diante de si sempre e apenas o espaço vazio, onde não encontra apoio, por mais que se estique. Assim é comigo: tenho sempre à frente o espaço vazio, indo adiante em virtude da consistência que tenho detrás. A vida tem as pernas pr’o ar, é terrível, intolerável.


"Minha visão da vida carece de todo o sentido. Suponho que um espírito mau me pôs sobre o nariz um par de óculos, uma de cujas lentes magnifica tremendamente tudo, enquanto a outra tem poder equivalente de tudo encolher.


"De todos os ridículos, não há maior, para mim, do que o do ocupado homem de negócios, pronto a cear, pronto a trabalhar. Tanto que, quando vejo pousar uma mosca, num momento crucial, sobre as ventas de um homem de negócios, ou quando o vejo respingado de lama à precipitada passagem dum coche, ou quando bem à sua frente levanta-se a ponte, ou quando cai do teto uma telha, matando-o, rio com vontade. O que faz rir? O que realizam esses apressados? Não são eles como as donas de casa que, desorientadas com seu lar em chamas, salvam os atiçadores? O que mais levam eles do grande incêndio da vida?


"Perguntem-me o que lhes aprouver, mas não me peçam razões. A uma moça perdoa-se a incapacidade de fornecê-las, pois vivem, como se diz, com os próprios sentimentos. Comigo é diferente. Tenho, em geral, muitas e com freqüência mutuamente contraditórias, de modo que por tanto me é impossível oferecer razões. Algo de errado parece haver com causa e efeito, que não se combinam com acerto. Causas tremendas e poderosas por vezes produzem pequenos e irrisórios efeitos, senão nenhum; enquanto ocorre de uma ligeira causa menor resultar em efeito colossal.


"Ninguém volta dos mortos, ninguém jamais veio ao mundo sem chorar; a ninguém se pergunta quando na vida deseja entrar nem quando dela quer sair. "O tempo flui, a vida é uma corrente, diz a gente, e assim por diante. Eu não vejo como. O tempo é imóvel e eu com ele. Todos os meus planos se lançam de volta sobre mim; quando cuspo é em minha própria cara. "Cada qual deve ser um mistério, não só para os outros, mas para si. Estudo-me; quando me canso, á guisa de passatempo acendo um charuto e penso: o Senhor sabe apenas o que supõe ou o que faria de mim.


"Divido o meu tempo assim: uma metade passo dormindo e a outra, sonhando. Nunca sonho enquanto durmo; seria uma pena, pois o sono é o exercício maior do gênio.


"A natureza reconhece a dignidade humana, pois quando se quer manter os pássaros distante das árvores, monta-se algo parecido com um homem, e mesmo essa pouca semelhança, caso do espantalho, é bastante para inspirar aos pássaros respeito. "A melhor prova da miséria da existência é a derivada da contemplação de suas glórias.


"Os homens, em maioria, perseguem o prazer com tal azáfama que logo lhe estão adiante. Guardam-no como à princesa capturada o anão em seu castelo. Um dia, tira uma pestana. Quando acorda, depois de hora, foi-se a princesa. Rápido, suas botas de sete léguas calça e num só passo a deixa para trás."


Em Kierkegaard - Diapsalmata


"Em sendo contrário ao espírito da Irmandade das Vidas Sepultas (symparanekronomenoi) produzir coerência intrínseca ou grandes conjuntos em sua obra, em não sendo nosso propósito erigir uma Babel sobre a qual pode Deus, em sua justeza, descer e lançar destruição, já que, cônscios de ser tal confusão de línguas ocorrência justa, reconhecemos o fragmentário como característico dos que investigam sua verdade e entendemos ser precisamente isto o que a distingue da coerência infinita na Natureza, consistindo a riqueza do indivíduo precisamente em seu poder de fragmentária extravagância, sendo o êxtase do produzir também o do utilizar, não a laboriosa e meticulosa execução, nem a duradoura apreensão do executado, mas a produção e o desfrute dessa luminosa impermanência que para o produtor compreende algo mais do que o esforço completo, visto ser a aparência da Idéia, e que para o receptor, igualmente, contém um excedente, constatando que tal fulguração desperta sua produtividade própria - em vista de tanto ser contrário ao pendor de nossa irmandade (e desde que, de fato, mesmo o período que se vem lendo bem poderia ser tomado por ataque desmobilizador ao insinuante estilo que a idéia intumesce sem atravessar, um estilo a que se confere em nossa irmandade status oficial), então, enfatizando o fato de sequer poder chamar-se de rebelde a minha conduta, em vista do quão frouxa é a consolidação deste período, cujas cláusulas intermediárias se protraem de maneira suficientemente aforística e arbitrária, devo meramente ressaltar que meu estilo ensaiou parecer o que não é - revolucionário.


"Nossa sociedade necessita renovar-se, renascer, quando se reúne, tendo por fim poder sua atividade interna refazer-se com uma nova descrição de sua produtividade. Descrevamos nosso propósito como empenho em buscas fragmentárias ou na arte de redigir papéis póstumos. Uma obra poética inteiramente acabada não tem relação com a personalidade poética; no caso de escritos póstumos, em sendo inacabados, desordenados, sente-se necessidade de romancear a personalidade. Papéis póstumos são como ruínas; e que lugar assombrado seria mais natural para os sepultados? A arte, então, tem de produzir artisticamente o mesmo efeito, a mesma aparência de descuido e de acidente, o mesmo vôo anacolútico do pensamento; a arte consiste em agradar sem jamais tornar-se de fato presente, de modo que sempre tem algo de passado em si, é presente no passado. Isto já se expressou com o termo ’póstumo’. Tudo quanto o poeta produz, num certo sentido, é póstumo; mas nunca poderia chamar-se de póstuma uma obra acabada, nada obstante possua a qualidade acidental de não ter sido poublicada em vida do poeta. Admito também ser esta a verdadeira característica de toda produção humana como a apreendemos, que é herança, pois ao homem não se permite viver eternamente sob as vistas dos deuses. Uma herança, por conseguinte, é o que chamarei de efeitos produzidos entre nós, uma herança artística; negligência, indolência, eis como chamarei o gênio que apreciamos; vis inertiae, a lei natural que cultuamos. Com esta explanação compactuo com nossos sagrados costumes e leis."


Em Kierkegaard - O antigo mote trágico e seu reflexo no moderno

Rio, 30 de setembro de 2008

Waldemar M. Reis

domingo, junho 01, 2008

Para pensar Deus – a natureza de uma idéia recorrente

Em seu livro tratando de Deus o cientista Dawkins investe principalmente contra a versão de origem judaica da divindade. Mas não prova sua inexistência, para desespero de quem busca esse tipo de informação em publicações do gênero. Sua argumentação, nem sempre consistente, achou por bem concluir que é "praticamente" impossível que Deus exista, ou seja, embora não haja provas cabais dessa impossibilidade, é cabível tratar o assunto como se as houvesse, visto também não se provar o contrário.

Algo há, entretanto, a impedir a conclusão categórica desejada pelo autor, sendo devido, por isso, dar a esse impedimento valor análogo ao de uma prova, embora não se diga com a clareza suficiente do que se trata. E, é possível deduzir, se possui valor de prova, este é deveras baixo, pois também permite que ’na prática’ se possa ter Deus por inexistente.

Em algumas partes Dawkins menciona a improbabilidade tamanha de a vida formar-se no universo para enfatizar como somente o processo adaptativo teria proporcionado àquele evento, quase único em toda a duração do cosmo, manter-se e multiplicar-se. Percebe-se pelo argumento que Deus, em sendo ’na prática’ impossível, pode ser tido, ao menos em teoria, como ’muito improvável’ se comparado, por exemplo, à aparição da vida.

Mas probabilidade é função do tempo, que mais chance oferece de ocorrer o menos provável quanto mais longo for o período: refiro os eventos praticamente inexistentes, esses de existência muito improvável. À primeira vista parece abuso da lógica traduzir aqui a opinião de ser Deus ’praticamente inexistente’ como a de ser ’muito improvável’ que exista. Entretanto é isto o que quer dizer a ciência em não encerrando o assunto com provas irrefutáveis de não haver deus algum.

E quando Deus é o tema isto parece mesmo ser o máximo permitido à ciência honestamente concluir: pela muita improbabilidade de sua existência. Muito natural, é evidente, pressupondo-se honesta a ciência (uma ciência desonesta é contradição de termos, obra da estultice), visto ’improvável’ designar literalmente aquilo de que não se possui provas ou para que ainda não se conseguiu produzi-las. Sob esse viés as evidências da aparição da vida não são mais eloqüentes do que as da existência de Deus.

Em síntese, a ciência não é capaz - e desse modo o confessa - de detectar Deus, ou seja, não tem meios de realizá-lo. Deveria, por conseguinte, postergar suas investigações do tema até quando se sentisse melhor habilitada para a tarefa. Isto seria de esperar de qualquer pessoa honesta e ciente da distinção dos significados de improvável e impossível.

Para surpresa geral a ciência se vale, ao contrário, do que se pode chamar de navalha cartesiana, embora empregando-a com propósitos diferentes. Se Descartes, diante da dúvida quanto à existência do mundo, escolhe a negativa, não é por de fato descrer de que ele exista, mas para provar sua existência por intermédio do puro raciocínio, haja ver o esforço das últimas meditações. Assim, numa mostra de presunçosa confiança em si mesma, em face da muita improbabilidade a ciência encerra o assunto concluindo pela impossibilidade ’prática’ de Deus existir, o que, quando não se aventura a alardear de maneira taxativa, procura demonstrar nas atitudes de reserva cética dos seus profissionais.

’Pouco provável’ não é o mesmo que ’muito improvável’, como se poderia irrefletidamente pensar. Antes de mais, ’muito improvável’ não significa, a rigor, mais do que ’improvável’: o que, dentre tudo quanto é improvável, o seria mais ou menos, ou ainda, o que, dentre tudo de que não se pode provar a existência, oferece mais ou menos provas de existir? O que se exprimiria, nesse caso, modulando a improbabilidade com ’muito’ é, presumo, a confiança da ciência na própria capacidade de encontrar ou produzir provas do quanto decida investigar e de ser na prática inexistente aquilo que não as possui, além da segurança de que tal persistirá ao longo da evolução do conhecimento.

’Pouco provável’, do seu lado, indicaria existir, sim, ao menos uma prova, por certo não cabal. Como viemos observando, para a ciência não têm valor as tentativas tradicionais de provar a existencia de Deus. Não vê por que, por exemplo, diante do abismo abrindo-se ao questionamento incontornável acerca do princípio de tudo, postular-se um ponto inicial e chamá-lo, talvez precipitadamente, de Deus. Ora, pergunta-se ela, por que parar aí? Por que não continuar a série interminável de perguntas com aquela sobre a origem de tal origem?

O teísta astuto, usado nas limitações científicas, não perderia a oportunidade de observar a analogia entre sua própria precipitação em postular um fundo para o abistmo de questões acerca do princípio e o uso feito pela ciência da navalha cartesiana. Se é direito avaliar como nula a existência de algo (muito) improvável e com o prognóstico de essa avaliação permanecer enquanto houver ciência, ora, é direito também pôr Deus na origem de tudo, ainda que esta seja de fato inconcebível. Do mesmo modo amputam-se com freqüência as dízimas infinitas do quanto se considera irrelevante para obter-se o grau de aproximação desejado em cálculo que as utilize.

Aliás, a empresa científica seria impossível sem incontáveis reduções. Sendo seu objetivo constante a descrição do mundo, do seu funcionamento, e sendo o descrever o relato das interações de determinados fatos ou objetos, ora, a rigor uma qualquer descrição completa teria de abarcar absolutamente todas as interações, ou ter-se-ia de admitir no universo a existência de coisas que não interagem de modo algum, isto, sim, uma impossibilidade lógica. A descrição da ciência, entretanto, para ser exeqüível tanto quanto útil, tem de eleger um âmbito de interações a serem listadas, além do qual nada é tido por relevante para determinado fim. Caso contrário, nem toda a eternidade bastaria para a descrição de uma partícula, idêntica, se concluída, à descrição da totalidade das coisas.

Esse reducionismo, é bem verdade, não invalida a ciência, embora lhe confira considerável grau de imprecisão, aumentável por sua cooperação com as finanças e contra a qual o cientista honesto se bate. Não é incomum o uso de algo cujo conhecimento, por diversos motivos insuficiente, resulta em efeitos imprevistos e, não raro, indesejáveis também.

Assim como nos procedimentos científicos, há no procedimento teológico tão-só a presunção metodológica de evitar, com a designação ’Deus’, a queda interminável no abismo aberto pela questão da origem, em tudo semelhante ao método geométrico, que tem de eleger um entre os infinitos pontos de uma linha, sobre o qual baseará sua demonstração. O problema da teologia, o mesmo de todo ramo do conhecimento, começa quando produz ilações muito particulares e supostamente derivadas desse fundo arbitrário dado ao seu precipício, desse modo incitando ações intoleráveis.

Crendo-se honesta, a ciência não pode bater-se contra a iniciativa teológica, pois esta não é senão a investigação de um pensamento recorrente em toda a história da humanidade. Crendo-se honesta, a ciência teria de bater-se contra certo tipo de teologia, como de fato se bate contra a biologia com pressupostos criacionistas. A bem dizer, bate-se a ciência contra espécie de espantalho quando investe contra os resultados canhestros de uma teologia precária, embora capaz de estimular atos nefastos. Portanto não pode partir para a negação completa da empreitada teológica, em particular por não lhe ser possível tanto, como o demonstra ao estimar a existência de Deus como nula na prática ou ’muito improvável’.

Outro aspecto saliente do debate científico sobre Deus é o da inteligência. Para um evolucionista a inteligência resulta do esforço adaptativo das espécies que a portam, possuindo uma história, ainda que lacunar em tempos atuais. Com efeito não nos parece procedente chamar de inteligente o gene, mas sim o sujeito a quem dá origem. Que a inteligência exulte diante do trabalho genético e mesmo que o utilize para os mais diversos fins, isto não significa haver inteligência nele, nada obstante aja a inteligência como replicador de tudo quanto encontra na natureza, em grande medida lembrando, é mister admitir, a atividade do próprio DNA.

Se considerado desse modo, o assunto se encaminha para a afirmação de que, se de fato princípio, Deus não teria de necessariamente ser inteligente, como diz a teologia, não sendo a intelegência também um traço de que tanto possa a humanidade se orgulhar (e muito menos passível de honestamente atribuir-se a um ser considerado como a suprema origem de tudo). Em fim de contas a inteligência não passa da capacidade - em extremo variada e admirável, admita-se - dentre as tantas promovendo a reprodução de processos encontráveis todos na natureza, algo em boa medida muito comum. Neste ponto o teísta astuto teria de admitir que para Deus seria inútil, se não inconveniente, dizer-se inteligente, pois deve ele ter sacado o mundo do nada, tendo de inventá-lo desde o princípio, algo decididamente impraticável por qualquer inteligência - a qual cria, de modo impressionante, mas sempre a partir do já existente.

Em suma, se a inteligência cria (a partir do zero, portanto), então é atributo divino, mas se apenas reproduz, não passa de um dos resultados do quanto iniciou com a criação. Quando se bate com teorias como o criacionismo ou o design inteligente a ciência arremete contra os castelos de cartas de quem muito se admira do fucionamento das coisas, contra mera mostra da vaidade da inteligência. Quando combinado a esse centro, em que, humanos, nos constituímos e cujas capacidades únicas são a de emitir juízos numa gama indo de bom a mau e a de agir em função deles, esse replicador de processos no universo crido como exclusivamente humano, a inteligência, proporciona ocasião para muitos julgamentos positivos desses centros, outrossim ditos ’eus’. E, convenhamos, nada de intrinsecamente pernicioso há em as consciências regozijarem-se com aquilo de que são capazes.

O problema de qualquer vaidade - ou de qualquer coisa - estaria no uso que dela se faz, em particular o de produzir embriaguez inoportuna e, como no caso da inteligência, de incorrer, se não na produção de miragens dos processos na natureza (pois tudo quanto observa quase com certeza é como tal), por certo no emprego duvidoso dos mesmos. Em termos do criacionismo ou design inteligente há neles a combinação de investigação biológica ou cosmológica e de uma versão particular, aquela do ramo judaico-cristão, da intuição (chamemo-la assim) da divindade. Nesse embate a ciência teria com justiça o direito de no máximo perguntar pelos critérios usados para escolher esse e não outro dentre os inúmeros modelos disponíveis de Deus e de enfiada encaminhar, com o auxílio dos instrumentos da lógica (de momento, creio, os únicos a darem conta de semelhante tema), a devida crítica a este e aos demais modelos preteridos.

Mas para fazê-lo, tão afastada anda da filosofia (sua única e permamente fonte), a ciência terá de oferecer a mão à palmatória e admitir que carece de meios mais eficientes para detectar provas da existência de Deus. Terá de manter a distinção dos significados de improvável e de inexistente. Terá de convencer-se de que jamais conseguirá apagar do espírito humano a solução que este dá ao problema da origem, pois seria preciso antes convencê-lo a esquecer uma questão que obstinadamente o acossa ao simples pensar. E terá de, por fim, enxergá-la, solução, como de fato é, como mero passo metodológico em tudo semelhante ao dado por ela própria, ciência, quando de fato lhe convém desconsiderar os detalhes.

Passo seguinte, questão de método, é o entendimento das razões para tanto interessar ao humano o conhecimento de seus começos ou, dizendo-o de outro modo, é compreender a mecânica de imiscuição de tal interesse no intercurso dos demais pensamentos, muitos dos quais a serviço de ações triviais. A questão da origem se instala em toda iniciativa humana de lidar com a natureza tão-somente por ser limitado o conhecimento: a simples presença de limites no quanto conhece determina de imediato o sujeito a indagar de suas causas e buscá-las, acreditando por hábito que também as têm, o mesmo podendo dizer destas e das demais na progressão infinita.

Depois, admitido como algo inerente à atitude de pensar o universo, o problema da origem suscitaria ainda a investigação da pertinência de solucioná-lo elegendo um ponto no qual interromper a cadeia de origens, chamando-o de a origem primeira, assim como a compreensão da natureza do mesmo, a saber, a compreensão de como ese ponto escolhido torna irrelevante a suposição de seus começos. Pois enquanto origem, seja no sentido de início, seja no de substrato da existência, não havendo outro, Deus terá de possuir ao menos esse atributo, o de ser presença da qual é inútil indagar a origem.

Só então é possível debruçar-se sobre a literatura sacra, quando por lume se tem a certeza de que Deus, para sê-lo, tem de oferecer-nos motivos para não nos perguntarmos como se originou. E só então se saberá das versões já oferecidas de Deus quais apresentam esse traço. Caso não as haja, que se empreenda de pronto a dedução dos demais atributos divinos, dos quais não é parte, como já se mostrou, a inteligência - seja tido por começo ou por substrato de tudo, Deus não reproduz nada, pois ele nada possuiria para reproduzir, mas cria: não nos permitamos esquecê-lo.

Mas não surpreenda o fato de muito do que disseram sábios e santos se aplicar também ao Deus deduzido. Ele talvez seja onipresente e quiçá onisciente, parecendo inconcebível que seja onipotente, pois a plenipotência acarreta a inação, já que o exercício de qualquer potencialidade reduz a potestade. Um Deus onipotente é um Deus imóvel, puro e absoluto potencial impossibilitado de agir, ou não seria a totalidade o que pode. Portanto a ação, é indiferente como a concebamos, parece ser atributo certo da divindade, que seria muito - e mesmo inifinitamente, embora não totalmente - potente.

Também não surpreenda que muitos desses atributos se distribuam por coisas chamadas físicas, aproximando a ciência, que as investiga, da idéia de Deus. Pois ruma a ciência no encalço do divino, quer admita, quer não, e quando o nega é por muito justamente não admitir a possibilidade de detectá-lo tal e qual está nos esboços tendenciosos apresentados pela teologia vulgar. A ciência precisa entender que aos poucos pinta imagem particular de Deus e como tal deve oferecê-la à apreciação geral, mas sem se fazer em religião, sem deixar-se seduzir pela facilidade de dominar, disponível para quem lida com conhecimento assim fundamental.

É contra a religião e não contra a presença insistente da idéia de Deus que quer bater-se a ciência; é contra o uso malsão feito dessa e de outras tantas idéias fundamentais para se compreender a condição humana e mesmo o universo, como a idéia de fé. Se o que diz a etimologia é verdadeiro, o termo ’religião’ proviria da noção suspeita de religamento, por intermédio de um agente, do indivíduo com a divindade, como se possível fosse estarem estes dois alguma vez desligados.

A religião deve ter aparecido como as demais formas de dominação, pelos idênticos motivos mesquinhos que retardam ainda a compreensão da condição gregária do ser humano. É cabível cogitar que tenha resultado do assombro produzido por quem melhor conhecia os processos da natureza naqueles que os conheciam menos. Sob esse viés ela não passa de manifestação precoce de patifaria científica, caso se anua sem dificuldades à evidência de que o homem desde sempre observou a natureza e, por conseguinte, bem ou mal, com maior ou menor eficiência, procurou compreendê-la, isto é, praticou ciência, embora sob a denominação genérica de religião.

Parece haver apenas um modo de a ciência não tomar outra vez para si as atribuições da religião: obstinar-se em sua vocação exotérica, pôr-se à disposição de todos sem exceção. Isto não significa dar acesso às novas descobertas, não apenas: o oferecimento de seus resultados a um público como o contemporâneo não tem efeito significativamente diverso da imposição religiosa de dogmas ao vulgo. Significa antes mostrar como somos por natureza determinados a conhecer, como a todo instante, mais ou menos automaticamente, concebemos hipóteses acerca do que nos rodeia e nelas nos apoiamos para agir. Significa mostrar que somos por condição cientistas necessitando apenas de algum crédito e de inteirar-se do básico da ética e da lógica dedutiva para organizar suas intenções.

Só assim todos entenderemos que a existência de Deus não deve ser tratada em termos ’práticos’ pela navalha cartesiana, pois o problema se insinua em pensamentos confinando com a ’prática’, seja lá o que se intente dizer com o termo. Entenderemos também que se o fazemos é por anuirmos à nossa incompetência para dar um fim cabal à questão, protelando-a indefinidamente; e que o ato de adorar o divino, persistindo na história, não passa de mais um aspecto da vaidade da inteligência, semelhante ao exibido nas teorias criacionista e do design inteligente, externado embora de modo negativo, depreciando a nossa em vista da suposta inteligência divinal. Entenderemos, finalmente, o risco contínuo a que nos expomos, o de perpetuar o comportamento religioso e suas conseqüências nefastas, sempre que fazemos da ciência uma prática de poucos em benefício imediato de número ainda menor de indivíduos e aceita pelos demais, o vulgo, em virtude dos efeitos assombrosos que produz, milagres em versão atualizada.

Rio, 01 de junho de 2008

Waldemar M. Reis

terça-feira, maio 20, 2008

Para pensar Deus – metáfora de humanidade

O biólogo Dawkins escolheu para opositor central personagem particularmente frágil: a versão de divindade da tradição judaica. Tal fragilidade se deve a todos os malefícios, de exclusiva responsabilidade dos humanos, praticados em nome dela. E o discurso desse autor parece evitar o reconhecimento dos incontáveis serviços prestados à ética pela invenção abraâmica.


Entre suas teses está a da plena possibilidade de correção de caráter na ausência total de deuses, mas a principal delas parece originar-se na combinação de resultados dos diversos ramos da ciência natural, a saber, a de não ser demonstrável a precedência da inteligência com relação às coisas (ao universo), mas sim como resultante da evolução delas. Sendo a teoria evolucionista critério nevrálgico de sua contestação, seria razoável imaginar-se da parte de Dawkins, ora, o reconhecimento do papel de Javé no processo evolutivo das sociedades humanas ao tempo em que foi proposto como legislador da conduta. Não teria sido o Deus de Israel, enfim, passo necessário no processo de achamento dos princípios éticos?


Sim, é provável que seja Deus passo necessário na evolução humana e quiçá passível de descarte em tempos atuais, quando cremos ser melhores do que os homens de passado remoto. Feuerbach, há mais de cento e cinquenta anos, já ensejava com rara consistência dizer o mesmo. Mas é igualmente provável, em vista dos percalços da filosofia (sempre às voltas com antinomias atalhando-a em virtualmente toda questão possível de formular-se), que o tema do divino seja de fato incontornável na atitude humana de pensar. A idéia de Deus parece não ser descartável com provas advindas dos métodos das ciências da natureza e o motivo pode ser o de o pensamento - instrumento crucial na iniciativa científica - mostrar-se irreversivelmente contaminado por essa mesma idéia.


Para sugerir a supressão dos cultos à divindade Feuerbach também tinha como respaldo o cientificismo, ainda na infância à época de sua proposta, mas talvez por força do repertório incipiente de certezas da ciência natural de então tenha escolhido como fundamento espécie de psicologia universal, que sacou da própria idéia de deus cunhada pelo homem nas mais diversificadas manifestações culturais que foi capaz de criar. Entre os principais traços da psique humana arrolados por ele destacam-se por certo dois: o sentimento de dependência do indivíduo perante o quanto considera como exterior a si próprio e a antropomorfização da idéia de deus, não raro intermediada por zoomorfizações que, nada obstante, já se haviam sedimentado a partir de antropomorfizações dos comportamentos animais, bem como daqueles dos vegetais: se deuses assumiram as formas doutros bichos é porque o comportamento destes já havia passado pelo crivo da assemelhação com o comportamento humano ou da mera relação de ambos, àquele tempo já consagrada.


Em vista de tal, não é excessivo afirmar que Feuerbach ofereceu ao seu século e ao seguinte paradigma recorrente na formulação de sistemas profundamente marcantes de interpretação de indivíduo e sociedades, como a psicanálise e o socialismo. Desnecessário observar, se não a persistência intocada desses sistemas, ao menos a de sua essência. Pois, ora, num mundo onde o homem presume decifrada, enfim, a alegoria milenar com que costumava referir-se a uma idéia recorrente de seu ato espontâneo de pensar e que designou, entre outros, com o nome de Deus, num mundo como esse só há lugar para a auto-gestão, para a mais pura responsabilidade, tornando assim desnecessários os instrumentos de dominação usados em todo o espectro de suas intensidades para o exercício das governanças. Afinal é do próprio homem a inteira responsabilidade por todos os traços com que foi pintada a divindade, evidência disto sendo as marcas de antropomorfismo em cada um deles.


A metáfora, possivelmente exclusiva do raciocínio humano, caso aproxime, no ensejo de significar, coisas quaisquer, aproxima-as em primeiro lugar do homem, embora seja mais preciso dizer que opera o reverso, levando as singularidades de nossa espécie a designar existentes tidos como distantes de si em tempo, espaço e idéia. E se em inúmeras ocasiões os três reinos da natureza também carregaram para nós o significado de deus, isto se deu por já estarem carregados da acepção de homem.


De todos os traços que reconhecemos em nós, decerto como o mais característico elegemos a capacidade de compreender. É possível seguir as transformações a que foi submetido em sua história, por exemplo, Deus de Abraão, de princípio criando uma sua imagem, pura assemelhação, supostamente física (seja como isto possa compreender-se) que, nada obstante, discrepava de si em caráter, por tal não merecendo habitar o Paraíso. Assim, sendo-lhe concedida a aparência do criador, da criatura exige-se em seguida imitar-lhe também o modo de agir, isto não significando inexistir no homem o quanto idealizou em Deus, do contrário: talvez não sendo predominante, mas com certeza existente e, por conseguinte, percebida, elegemos essa parte nossa como objeto em cujo sentido evolvermos. O termos plasmado semelhantes traços num ser de abstrusa superioridade, de paradoxais presença, potência e ciência, justifique-se porventura na forçosa atitude paternal a que nos vemos coagidos no cuidado com a progênie, outra face da condição animal e, mais especialmente, da nossa, humana, que igualmente apusemos a Deus. Sem a imposição todo-poderosa, habituada como estava a humanidade a curvar-se ante o domínio pela força, provável é que a empresa evolutiva da mente como hoje a desfrutamos sequer começasse caso não absorvesse também as atribuições da paternidade.


Do viés evolucionista, por conseguinte, e em se partindo do pressuposto consagrado na filosofia de Feuerbach, o de ser a divindade produto da imaginação humana premida pelos revezes de que se via depender o indivíduo na imposição endógene de sobrevivência, as transformações por que passa a idéia recorrente de origem comum de todas as coisas parece ilustrar, além do processo evolutivo da humanidade no reconhecimento de seus próprios atributos, o papel ativo do homem na seleção daqueles quanto creu condizerem com suas aspirações de desenvolvimento pessoal. A seleção natural parece contar também, ao menos no caso humano, não exclusivamente com fatores exógenos, ou melhor, tudo parece indicar o papel decisivo do sujeito humano na escolha dos instrumentos com que responderia à exigências do meio à volta. Eis porventura uma idéia, se não ausente do darwinismo, por certo esquecida por seus cultores: o traço designado como inteligência não é só auto-referente, mas também dominante e exclusivista na evolução do homem.


Uma análise deste tipo pode outrossim levar novas luzes à tese central de Dawkins, a de o entendimento – a inteligência – ser resultante e não causa do processo evolutivo. Ora, do modo como o compreende, o ser humano o toma como traço distintivo seu, isto significando que o ato de apô-lo a coisas quaisquer – e mais especificamente aos deuses – enquadra-se como mais uma de suas iniciativas de antropomorfização do meio. Inteligente ou não, a mecânica intrínseca do universo trouxe-o de fato a configurar-se como atualmente o observamos, em toda diversidade e complexidade. E que reconheça como diversa e complexa a sua determinação de pensar, pela qual não apenas absorve as coisas ao modo de informação, mas também urde estratégias para lidar de maneira útil com elas, em suma, que o homem associe a capacidade de sua inteligência produzir com a exuberante produção testemunhada à volta, tal não significa existir no meio capacidade igual, assim como tantos outros atributos da humanidade usados para fins análogos.


E mais do que sintoma de incontido antropocentrismo (termo aqui utilizado com todo o peso que possa conter da idéia de egocentrismo), o uso humano de metáforas sacadas de sua própria condição é antes recurso pelo qual investe na decifração do desconhecido – ou do pouco conhecido – com instrumentos a si familiares, usando-os como medida geral. Desse modo a atribuição da inteligência ao universo deixa de ser uma presunção formulada sem o cabido vagar e com o fito de tão-só tornar procedentes certas ilações em torno à divindade para mostrar-se como unidade métrica pela qual pode o homem expressar e quantificar a exuberância constatada no seu entorno.


Iniciativas semelhantes se apresentaram no correr do tempo desde pelo menos a Antigüidade, como o atestam os sistemas de filosofia atribuídos a Xenófanes e Protágoras, o deste último, através da máxima que faz do homem medida do todo, como que demonstrando o pressuposto central do anterior, de ser o "noûs" princípio universal. E se erro há nisto, é do mesmo gênero do cometido com freqüência compreensível no âmbito das ciências da natureza, a que se é determinado pela imposição indutiva, pela qual somos instados, nem sempre oportunamente, a projetar os resultados obtidos no processamento das informações do passado no presente contínuo descortinando-se à nossa frente. Quase nunca o jogador, papel que assumimos por destinação, pode elaborar o suficiente o próprio lance na urgência com que se acredita premido pelo entorno a responder-lhe os desafios. Pode-se pensar: precipitação milenar essa de atribuir ao mundo ou aos deuses inteligência, poder criador. Sim, deve-se admitir. Mas qual outra maneira apresentaria a bastante eficiência em expressar essa admirável conivência de nossa capacidade abstrata de conceber e a supostamente espontânea geração na natureza? Não há, pelo menos em princípio, erro intrínseco em utilizar-se uma medida em lugar de outra na interpretação da natureza, mas sim nos fins dados ao resultado de tal operação.


Doutro lado e por fim, desnecessário fosse talvez sinalizar para um especialista em processos biológicos a íntima conivência da estrutura autônoma organizando a matéria e sua resultante inteligência humana: talvez não convenha chamar as duas pelo mesmo nome, assim como não é adequado chamar de ser humano os genes em seu interior, senão como recurso poético. E não se despreze, na empresa de compreender os meandros da decifração da natureza pelo homem, a presença do que hoje denominamos poesia, em particular quando as idéias de ciência e sagrado ainda eram uma só. Se definida, de maneira rasa, como a forma de aproximar, em discurso, o quanto no universo é tido por estar demasiado apartado, ou seja, de pôr em relação o que no mundo não parece relacionar-se ou, em suma, de criar metáforas, a poesia tem tomado para si o papel do batedor atrás do qual pode seguir a caravana da ciência no seu ritmo próprio, embora nem sempre cauteloso, como quer fazer crer a quem simplesmente a vê passar.


Rio, 02 de maio de 2008


Waldemar M. Reis


Arremate


O texto acima apareceu quando eu ainda lia o livro de Dawkins sobre Deus. Veio na forma de reação ante uma seqüência de argumentações intoleráveis, mormente quando formuladas por profissional da ciência. Refere-se, por conseguinte, à parte até então conhecida por mim do trabalho desse cientista, muitas de cujas assunções iniciais são retomadas nos capítulos finais, ganhando apenas maior nitidez, não maior poder de persuasão. Tratou-se, de minha parte, de exercício dedutivo do que seria como um todo a obra a partir do conhecimento de uma de suas seções, talvez a mais substanciosa e significativa, embora não a mais feliz. Deixei-o como o concebi e reservo para este arremate informar que Dawkins, mais adiante no livro e sem o esperado brilhantismo, trata a crença em Deus do viés evolucionista, sim, e conclui ser ela não um dos traços adaptativos, mas manifestação inconveniente de alguns deles. Argumenta com o exemplo da navegação noturna de vespas e outros insetos, que tem por guia os corpos celestes, e o poder mortal exercido pelo fogo sobre esses animais por contarem com semelhante habilidade. Num processo análogo a autoridade divina seria manifestação equívoca da inclinação da natureza humana para o respeito pelos indivíduos mais velhos em vista de sua experiência, do conhecimento que detêm: desse viés Deus é demonstrado como o são as doenças congênitas, ou seja, como desvios, nem sempre inúteis de todo, na rota adaptativa da espécie.


Rio, 20 de maio de 2008

terça-feira, janeiro 01, 2008

Nota sobre intolerância e doutrina liberal

Crença muito difundida no mundo moderno, embora já sustentada de longa data, é a de sermos todos capazes de conviver a despeito das diferenças, a despeito das divergências. Pode alegar-se, é bem verdade, que se trata antes de hipótese justificada na constatação histórica: em vista da fragilidade inerente para sobreviver no meio natural, o gênero humano vem submetendo-se a perene comunidade desde – é suposto – o seu aparecimento, embora não seja possível afirmar com conforto a permanência de um estado de paz, de bem estar, sequer em dois instantes consecutivos dessa história comunitária. Prova esta de o contato de indivíduos humanos não se ter isentado do traço da intolerância – a despeito da forçosa determinação de convívio trazida na constituição frágil da espécie – ou ser afeito a divergências inconciliáveis que, se não têm o poder de cancelar o contrato social, o tornam em contínuo suplício.

Entretanto, se tomada como se anunciou, como crença, no sentido de profissão de fé, a afirmação de ser possível convivermos não obstante divergirmos, quando posta na boca de quem esteja seguro de possuir as melhores intenções ao dizê-la, parece pressupor um estado contrário ao observado na associação humana, a saber, de paz, compreensão, enfim, de tolerância. À primeira vista parece sugerir a prática disto mesmo, da tolerância, digo, parece ensejar a constituição de indivíduos permanentemente capazes de relevar o quanto na atitude alheia lhe possa ser infenso, mas não, talvez, o seu aperfeiçoamento com vistas a não empreenderem nada a impedir o bem-estar dos demais. O bom senso nos indicaria tratar-se de ambas as sugestões. O mau treinamento na boa convivência obriga quem sofre suas conseqüências a tão-só tolerar, atitude imprescindível enquanto o uso sistemático da auto-crítica pelos ofensores não a torna desnecessária. Atingido, assim, um estágio generalizado de ações individuais selecionadas, imagina-se que os pontos de dissenso permaneceriam existindo, embora seja igualmente de supor não consistirem em fatores a cobrarem complacência acentuada.

A experiência histórica mostra-nos também isto: dentre as divergências há as intoleráveis, as quais o mundo como o conhecemos vem, via de regra, negligenciando, vem fingindo, de um lado, não praticar atos merecedores de grande tolerância – quando não de punição severa – e, de outro, não dar fé daqueles de que são vitimas – numa sorte de indiferença à imitação da estóica, embora prenhe de ressentimentos. Definindo-o de um modo apressado, o divergir constituiria oposição frontal de indivíduos a condições tidas como contrárias ao que é fundamental em suas existências. Tendo-se em conta isto, ou não há entre nós consenso quanto a quais sejam as condições adequadas e mesmo quanto a se consistem de fato em fundamento existencial do indivíduo (disto deduzindo-se a incompatibilidade geral e incontornável de cada um para com os demais), ou a capacidade humana de indulgenciar é demasiado reduzida. Talvez observem-se ambas as situações.

Excetuando-se as iniciativas pessoais, sobre as quais podem incidir escolhas religiosas, há duas tentativas seculares clássicas de equacionamento do bem-estar comunal experimentadas no correr do último par de séculos ditas, uma, liberal, outra, socialista. A contraposição dos nomes e sua aplicação aos fatos sugerem, a uma abordagem imediata, certa indiferença para com a causa coletiva no primeiro e, no segundo, incompatibilidade de gregarismo e liberdade. O modo de entender o conceito de liberdade é o referencial para o sugerido na oposição dos dois termos: se designa a obediência do sujeito a tudo quanto possa ditar-lhe o desejo a despeito do mal-estar alheio, o liberalismo vem a ser o embate perpétuo de individualidades num meio político de regras demasiado instáveis e o socialismo doutrina cuja missão é o estabelecimento de limites para a atuação pessoal com vistas ao bem geral; mas se liberdade se define como a manifestação de quem, justo por ter na mais alta conta o próprio bem-estar, entende a estreita dependência deste para com o dos seus consociados, então as diferenças entre liberais e socialistas deixam de ter sentido.

Um indivíduo livre neste último sentido é, parece-me, tudo quanto pode desejar-se de alguém, mesmo se quem o deseja toma como verdadeiro o primeiro dos significados de liberdade. Muito embora se espere de quem se crê livre desse modo – o primeiro – a firmeza bastante para transigir em face dos excessos previsíveis de outrem compartilhando do mesmo credo, a prática fornece constantemente dados demonstrando a variedade de lindes, nesses professos liberais, para a tolerância das veleidades alheias. Pelo que o liberalismo, embora ensejando pronunciar-se em prol de uma irrestrita liberdade, termina por apor-lhe condições, ainda que de contorno incerto, assim dando margens a variegadas interpretações que o tornam, em realidade, o preceito bárbaro que de maneira tão canhestra tentou aprimorar.

Ora, o liberalismo pontuado de regras de conduta termina por ser, à primeira vista, justo aquele professado por quem tem na mais alta conta o próprio bem-estar e por tanto cuida do bem alheio por conhecer o quão entremeados este e o seu estão. Mas se termina por incorrer em erros ou em burlas, é por não se constituir sobre tal premissa, a do bem comum em prol do bem individual, antes usando-a como sorte de estatuto provisório cujo fito, nada inocente, é tão-só protelar uma pré-concebida ação livre à moda libertina para quando oportuno for. Por trás da transitória regulação da liberdade, enfim, jaz ad aeternum a esperança do indivíduo de perfazer atos livres no sentido em que, no fundo, crê, ou seja, a despeito do assentimento dos que a si estão associados. Quanto à oportunidade, ela é, infalivelmente, aquela em que o ato inaceitável passará desapercebido ou em que terá de ser universalmente tolerado, sem alternativa: em suma, todo liberal autêntico, no primeiro dos sentidos apontados acima, é aquele que aguarda a circunstância em que terá poder suficiente para predominar, desse modo desfrutando os seus atos da invisibilidade ou da ostensão próprias de quem os pratica do viés dominante.

Uma das espertezas da conhecida doutrina liberal em voga nos meios políticos e econômicos desde pelo menos os confins do século XVII é anuir ao conhecido bordâo reconhecendo oportunidade para todos. Ora, pergunte-se, com razão: oportunidade de que? para que? Para ocupar – ou de ocupar – os postos exclusivos e reservados aos quantos podem gozar da própria liberdade como sói, por sob os disfarces, professar a doutrina liberal. O resultado evidente é a própria realidade na qual estamos imiscuídos, de que falávamos no início, sortida de todo tipo de desentendimento, uma vez todos – ou praticamente todos – terem por desejo maior galgar a pirâmide social ao encontro desse lugar por cujas duvidosas virtudes está-se desde berço seduzido. Quem escapa à sina de tal aspiração é decerto por ser dotado de dose maior de tolerância ou por achar conveniência no lugar, embora ordinário, que ocupa. Destes muitos há que não recusariam, caso se apresentasse graciosamente, a ocasião de ascender: são os oportunistas no sentido lasso e não seria de impressionar se um estatístico mostrasse que existem em proporção muito maior do que a suposta aqui.

Interessante é notar o quão cioso é o homem de sua escalada na descoberta de bens tecnológicos cujo fim, naturalmente, é incrementar o conforto. A despeito de vivermos num tempo de crescimento em progressão geométrica da geração de tecnologia, futurólogos teimam em supô-lo infinito, inesgotável. É de esperar, na medida em que igualmente não tem peias o desejo de bem-estar do indivíduo humano. Ao lado disso, pouco ou nada se espera, ao menos na prática, de aperfeiçoamento da própria natureza do homem, a saber, do seu caráter, de sua capacidade de melhor conviver. Do viés da doutrina liberal, pouco se espere nesse sentido: melhorar a natureza humana seria conspurcá-la, privá-la de seus anseios de liberdade ou, antes, de sua livre manifestação. Uma das pedras de toque do liberalismo, inclusive, é o atestamento e a defesa da diversidade de anseios: nem todos querem o mesmo, razão de muitos estarem satisfeitos onde estão, não necessitando atingir o topo da pirâmide social para sentirem-se plenos. De uma certa maneira têm razão os liberais: quiséramos todos as mesmas coisas e não haveria necessidade de tanta publicidade, de tanta estratégia de mercado direcionando o desejo de muitos para certas coisas. Mas a satisfação a que se referem pode, em grande medida, ser nomeada 'resignação', visto não contarem os resignados com o suficiente para sequer almejarem sair de onde estão e rumarem para um posto imediatamente acima. Se consideradas as condições reais desses lugares pode ter-se uma razoável medida do poder do instinto vital, fazendo os seus ocupantes preferirem ser como são a não serem de modo algum. E, é claro, um bom liberal não deixaria de tirar partido de escolha assim instintiva a lhe proporcionar hordas de mãos laboriosas sustentando a sua privilegiada posição.

Rio, 01 de janeiro de 2008

Waldemar Mendonça Reis

Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported License