Ensaios e afins
Os escritos a seguir são partes do jogo simplório de periodicamente lançá-los à maneira de garrafas com mensagens ao mar, embora subvertendo o sentido ordinário do gesto. Pois tendo o propósito inicial de auxiliar o autor na organização do pensamento, seu teor deixa clara a presunção de não ser exata ou tão-somente ele o náufrago a que se destinam.
terça-feira, dezembro 30, 2008
Desvendando o Plano Inteligente
terça-feira, outubro 07, 2008
O mundo acabou?
E nós temendo, faz poucas semanas, uma hipotética hecatombe iniciada no novo acelerador de partículas. Antes fossem fundadas tais premonições. Ao menos seria catástrofe instantânea, diga-se, inteiramente imperceptível, como asseguram os físicos. Um espírito polêmico sentir-se-ia à vontade para perguntar: não teria ela ocorrido de fato e não viveríamos agora no tão sonhado e temido Além?
É impossível responder-lhe com acerto, mas sendo mesmo este o caso, pouco se observa de diferente da vida passada, permanecemos no Purgatório, com a particularidade de alguns de seus aspectos parecerem agora mais veementes: a atmosfera sofre de um certo exagero, com tufões gerando-se em questão de minutos e mantendo-se no ar por dias ou dissolvendo-se logo que transpõem o horizonte, gélidos meios-dias cheios de sol e a bolsa - meu Deus! - a louca bolsa desgrenhando-se em meio à plácida fartura das linhas de montagem e do deslocamento incólume das multidões na densa névoa de Pequim. Sim, continuamos no Purgatório, embora - quem sabe? - tenha-nos mesmo pulverizado a curiosidade da ciência ao produzir mero arremedo do fiat primevo. Continuamos no Purgatório por não existir, talvez, senão Purgatório, misto de abundância - dádiva celeste - e insaciabilidade - sua contrapartida infernal. Talvez seja o caso de o mundo continuar o mesmo depois de acabado (por lhe ser impossível inexistir, segundo afirmou alguma filosofia), apresentando somente uma alteração na intensidade das coisas.
Isto é o suficiente, entretanto, para tirar dos trilhos, além dos cinco básicos, o sexto e mais crucial dos sentidos: o da premonição. E como o provocou uma flutuação quântica, useira e vezeira em inverter a seta do tempo, seus efeitos se fizeram sentir antes mesmo das causas: pressentimos catástrofe, é verdade, mas não a do retorno do mundo ao pó; antevimos a pulverização do quanto pensamos dele, o vasto sistema de valores erguido ao longo dos dois ou três últimos milhares de anos. E então testemunhamos o desvario dessa senhora sobre quem pesou guardar a integridade do castelo de retângulos de papel, discos de metal e cartões em plástico cujo colapso tirou-lhe o tino.
Vendo-a assim, parece não haver dúvidas de que enlouqueceu de vez, mas diante da universal e continuada indiferença para com sua aflição é possível notar um certo exagero em como a demonstra, um tom de encenação (pois mesmo para a loucura são impostos limites). Peregrina nos dias úteis ao redor da Terra que, por girar sem descanso, obriga-a ao cumprimento de jornadas noite adentro, quer, em resumo, cooptar a comoção geral, suscitar o desespero mundial pelo desmoronamento de seu efêmero fortim; quer cumpridos os termos pelos quais nos apalavramos, ver ruir também cada parte do mundo que as peças de seu castelo representam.
Até há pouco não merecia senão a piedade circunstante e por seguidores não tinha mais do que os conhecidos arautos do apocalipse. Mas tamanha é a insistência do desvairado cortejo que se observam, com o passar dos dias, novos adeptos: abandonam seus afazeres para lhe fazerem coro no conhecido bordão com que ora pede, ora suplica, ora exige que tudo pare. Caso sucedam os seus planos, em breve estaremos todos na comitiva e, quem sabe, ajudamo-la a reerguer o edifício de papel, discos metálicos e matéria plástica, recebendo pela tarefa algum soldo, que de pouco ou nada nos servirá até voltarem à ativa engrenagens e arados. Enquanto isso poderemos restaurar outros aspectos saborosos da vida, como a circulação de promessas, essenciais na constituição da certeza de possuirmos algum futuro.
De momento a reconstrução do mundo oferece ainda pouca vantagem e portanto não há motivo para empreender nada. Além da saciação da fome e da sede, o que se promete a quem nos provê do alimento? Muito pouco, avalia-se. Por que? Por tratar-se, ora, de crise, e de crise do essencial, do pressentimento. Em tempos dela todo o mais perde a importância, inclusive o viver! O mecanismo é simples, lógico, fácil de entender: o futuro só existe para quem é capaz de pressenti-lo, mesmo que sem o esperado acerto, não havendo instrumento tão eficaz no estímulo de pressentimentos quanto as promessas que, mesmo insustentáveis e conseqüentemente descumpridas, mantêm sempre aberto o caminho para as cobranças. E cobros de prometidos são exercícios infalíveis da construção do futuro, mesmo sendo ele rancoroso e triste.
Estão em crise nossos futuros por não sermos capazes de concebê-los de outro modo; projetamo-los muito além do que somos capazes de divisar; há mais promessas do que possibilidades de honrá-las. Crise de futuros só se dá no rastro de crise outra, esta mais séria, mais grave e porventura perene, mas constantemente contornada pelo trabalho incansável de legisladores e com freqüência subestimada enquanto não acomete o pressentimento: trata-se de crise da honra mesmo, sustentada em sua latência pelo pendor humano para o ludíbrio, este gerado pela universal propensão para a indolência, que não pode senão ser controlada, jamais extinguida. Em tempo de incêndios como este pouco se obtém no rescaldo, a não ser a certeza resignada de que praticamente nada se queimou, pois nada havia para queimar senão vaidade insustentável, equilibrada sobre esperteza de tipo efêmero, incapaz de manter-nos convencidos da segurança que inspiram os seus cofres de papel. Tempo promissor, sim, embora as dádivas que anuncia não tenham o apelo das antigas.
Parece que a ciência conseguiu mesmo dar fim no mundo - e isto é tão certo quanto é impossível provar o contrário. Em sendo esta a realidade pós-apocalíptica, prova de a destruição do mundo ser espécie de decaimento em outro semelhante e talvez somente mais atroz, não faltará quem lamente a impossibilidade de ele tornar-se nada.
Rio, 07 de outubro de 2008
Waldemar M. Reis
terça-feira, setembro 30, 2008
Fragmentos 'pré-modernos'
A difícil arte da tradução, a lúbrica facilidade da presunção, um texto instigando noutro vernáculo e o impulso de entendê-lo neste que compreendo melhor: os ingredientes de cuja combinação destilaram-se as linhas mais abaixo.
Nada obstante os quase duzentos anos de nascido seu autor, desconcertam pela insistente atualidade, tanto que o inculpam de germinar o redundante existencialismo. Alguns propósitos em aparência o obstinaram, ao menos em certos escritos, como a vertigem da alteridade - artifício visando ao distanciamento esperado naqueles que praticam a ciência, mas empregado com a veemência de quem, por sinceridade, não pôde debruçá-la senão sobre si mesmo - e os heterônimos multiplicando-se ao passo que constatava seus desdobramentos próprios, por cujo intermédio procurava seu espírito amoldar-se às extravagâncias morais daquele tempo.
Em vista disto mesclou em vários de seus trabalhos ficção e filosofia, dispondo as personagens como que num labirinto. Parecia querer tornar o conceito à condição originária, mítica, na qual possuiria a concretude do sentimento. Em Kierkegaard raciocina a comoção, enternece a lógica. E a fé provoca, faz tremer...
Temeu e condenou o fracionamento de seu trabalho, deste em particular, de título insólito, "Ou, ou", cujas partes aqui se lançam no limite do acaso. Mas foi capaz de reconhecer-se como origem e estímulo desse mesmo risco, dado o seu pendor quase irresistível para o aforismo.
A inquieta fraseologia intriga e encanta pelo emprego dos recursos extremos da gramática tendo por intuito evidente fazer cantar a dedução. Utilizaram-se duas versões em inglês, a de David e Lillian Swenson, revisada por Howard A. Johnson, e a de Alastair Hannay.
***
"O que é um poeta? Um infeliz cujo coração abriga dor profunda, mas cujos lábios são capazes de fazer dos gritos e gemidos que por ali passam música arrebatadora. Sua sorte é como a das infelizes vítimas do tirano Faláris, encerradas em touro de latão, lentamente torturadas por fogo constante; seus gritos atingiriam jamais os ouvidos do tirano, nem terror lhe causariam no coração; soariam, quando escutados, qual doce música. E o povo rodeia o poeta dizendo-lhe: ’Canta para nós outra vez’ - o mesmo é dizer-lhe: ’Possam novos tormentos afligir teu espírito, mas que continuem teus lábios como dantes; pois teus gritos somente nos inquietariam, mas a música, ora, a música é deliciosa’. E vêm adiante os críticos, dizendo, ’Perfeito - como tem de ser, segundo as leis da estética’. Agora, entenda-se que o crítico difere do poeta por um fio; falta-lhe tão-só a angústia no coração e música nos lábios. Eu lhes digo: preferível é guardar porcos que me entendam a ser poeta incompreendido.
"... pois antevejo as inquietações e elas teimam em ficar atrás.
"Tenho coragem, acredito, de duvidar de tudo; tenho coragem, creio, para lutar contra tudo; mas não tenho a coragem de nada saber; nem a coragem de ter - de possuir - nada. Lamenta-se que seja o mundo assim prosaico, que não seja a vida como num romance, no qual as oportunidades são sempre favoráveis. Eu lamento não ser a vida um romance com pais desalmados, tritões e gnomos contra que lutar e princesas para libertar. O que são todos esses inimigos comparados às pálidas, exangues e tenazes formas noturnas contra as quais me bato e a que dou vida e substância?
"O que pressagia? O que trará o futuro? Eu não sei, não tenho pressentimento. Quando se lança de algum ponto fixo, segundo sua natureza, vê a aranha diante de si sempre e apenas o espaço vazio, onde não encontra apoio, por mais que se estique. Assim é comigo: tenho sempre à frente o espaço vazio, indo adiante em virtude da consistência que tenho detrás. A vida tem as pernas pr’o ar, é terrível, intolerável.
"Minha visão da vida carece de todo o sentido. Suponho que um espírito mau me pôs sobre o nariz um par de óculos, uma de cujas lentes magnifica tremendamente tudo, enquanto a outra tem poder equivalente de tudo encolher.
"De todos os ridículos, não há maior, para mim, do que o do ocupado homem de negócios, pronto a cear, pronto a trabalhar. Tanto que, quando vejo pousar uma mosca, num momento crucial, sobre as ventas de um homem de negócios, ou quando o vejo respingado de lama à precipitada passagem dum coche, ou quando bem à sua frente levanta-se a ponte, ou quando cai do teto uma telha, matando-o, rio com vontade. O que faz rir? O que realizam esses apressados? Não são eles como as donas de casa que, desorientadas com seu lar em chamas, salvam os atiçadores? O que mais levam eles do grande incêndio da vida?
"Perguntem-me o que lhes aprouver, mas não me peçam razões. A uma moça perdoa-se a incapacidade de fornecê-las, pois vivem, como se diz, com os próprios sentimentos. Comigo é diferente. Tenho, em geral, muitas e com freqüência mutuamente contraditórias, de modo que por tanto me é impossível oferecer razões. Algo de errado parece haver com causa e efeito, que não se combinam com acerto. Causas tremendas e poderosas por vezes produzem pequenos e irrisórios efeitos, senão nenhum; enquanto ocorre de uma ligeira causa menor resultar em efeito colossal.
"Ninguém volta dos mortos, ninguém jamais veio ao mundo sem chorar; a ninguém se pergunta quando na vida deseja entrar nem quando dela quer sair. "O tempo flui, a vida é uma corrente, diz a gente, e assim por diante. Eu não vejo como. O tempo é imóvel e eu com ele. Todos os meus planos se lançam de volta sobre mim; quando cuspo é em minha própria cara. "Cada qual deve ser um mistério, não só para os outros, mas para si. Estudo-me; quando me canso, á guisa de passatempo acendo um charuto e penso: o Senhor sabe apenas o que supõe ou o que faria de mim.
"Divido o meu tempo assim: uma metade passo dormindo e a outra, sonhando. Nunca sonho enquanto durmo; seria uma pena, pois o sono é o exercício maior do gênio.
"A natureza reconhece a dignidade humana, pois quando se quer manter os pássaros distante das árvores, monta-se algo parecido com um homem, e mesmo essa pouca semelhança, caso do espantalho, é bastante para inspirar aos pássaros respeito. "A melhor prova da miséria da existência é a derivada da contemplação de suas glórias.
"Os homens, em maioria, perseguem o prazer com tal azáfama que logo lhe estão adiante. Guardam-no como à princesa capturada o anão em seu castelo. Um dia, tira uma pestana. Quando acorda, depois de hora, foi-se a princesa. Rápido, suas botas de sete léguas calça e num só passo a deixa para trás."
Em Kierkegaard - Diapsalmata
"Em sendo contrário ao espírito da Irmandade das Vidas Sepultas (symparanekronomenoi) produzir coerência intrínseca ou grandes conjuntos em sua obra, em não sendo nosso propósito erigir uma Babel sobre a qual pode Deus, em sua justeza, descer e lançar destruição, já que, cônscios de ser tal confusão de línguas ocorrência justa, reconhecemos o fragmentário como característico dos que investigam sua verdade e entendemos ser precisamente isto o que a distingue da coerência infinita na Natureza, consistindo a riqueza do indivíduo precisamente em seu poder de fragmentária extravagância, sendo o êxtase do produzir também o do utilizar, não a laboriosa e meticulosa execução, nem a duradoura apreensão do executado, mas a produção e o desfrute dessa luminosa impermanência que para o produtor compreende algo mais do que o esforço completo, visto ser a aparência da Idéia, e que para o receptor, igualmente, contém um excedente, constatando que tal fulguração desperta sua produtividade própria - em vista de tanto ser contrário ao pendor de nossa irmandade (e desde que, de fato, mesmo o período que se vem lendo bem poderia ser tomado por ataque desmobilizador ao insinuante estilo que a idéia intumesce sem atravessar, um estilo a que se confere em nossa irmandade status oficial), então, enfatizando o fato de sequer poder chamar-se de rebelde a minha conduta, em vista do quão frouxa é a consolidação deste período, cujas cláusulas intermediárias se protraem de maneira suficientemente aforística e arbitrária, devo meramente ressaltar que meu estilo ensaiou parecer o que não é - revolucionário.
"Nossa sociedade necessita renovar-se, renascer, quando se reúne, tendo por fim poder sua atividade interna refazer-se com uma nova descrição de sua produtividade. Descrevamos nosso propósito como empenho em buscas fragmentárias ou na arte de redigir papéis póstumos. Uma obra poética inteiramente acabada não tem relação com a personalidade poética; no caso de escritos póstumos, em sendo inacabados, desordenados, sente-se necessidade de romancear a personalidade. Papéis póstumos são como ruínas; e que lugar assombrado seria mais natural para os sepultados? A arte, então, tem de produzir artisticamente o mesmo efeito, a mesma aparência de descuido e de acidente, o mesmo vôo anacolútico do pensamento; a arte consiste em agradar sem jamais tornar-se de fato presente, de modo que sempre tem algo de passado em si, é presente no passado. Isto já se expressou com o termo ’póstumo’. Tudo quanto o poeta produz, num certo sentido, é póstumo; mas nunca poderia chamar-se de póstuma uma obra acabada, nada obstante possua a qualidade acidental de não ter sido poublicada em vida do poeta. Admito também ser esta a verdadeira característica de toda produção humana como a apreendemos, que é herança, pois ao homem não se permite viver eternamente sob as vistas dos deuses. Uma herança, por conseguinte, é o que chamarei de efeitos produzidos entre nós, uma herança artística; negligência, indolência, eis como chamarei o gênio que apreciamos; vis inertiae, a lei natural que cultuamos. Com esta explanação compactuo com nossos sagrados costumes e leis."
Em Kierkegaard - O antigo mote trágico e seu reflexo no moderno
Rio, 30 de setembro de 2008Waldemar M. Reis
domingo, junho 01, 2008
Para pensar Deus – a natureza de uma idéia recorrente
terça-feira, maio 20, 2008
Para pensar Deus – metáfora de humanidade
O biólogo Dawkins escolheu para opositor central personagem particularmente frágil: a versão de divindade da tradição judaica. Tal fragilidade se deve a todos os malefícios, de exclusiva responsabilidade dos humanos, praticados em nome dela. E o discurso desse autor parece evitar o reconhecimento dos incontáveis serviços prestados à ética pela invenção abraâmica.
Entre suas teses está a da plena possibilidade de correção de caráter na ausência total de deuses, mas a principal delas parece originar-se na combinação de resultados dos diversos ramos da ciência natural, a saber, a de não ser demonstrável a precedência da inteligência com relação às coisas (ao universo), mas sim como resultante da evolução delas. Sendo a teoria evolucionista critério nevrálgico de sua contestação, seria razoável imaginar-se da parte de Dawkins, ora, o reconhecimento do papel de Javé no processo evolutivo das sociedades humanas ao tempo em que foi proposto como legislador da conduta. Não teria sido o Deus de Israel, enfim, passo necessário no processo de achamento dos princípios éticos?
Sim, é provável que seja Deus passo necessário na evolução humana e quiçá passível de descarte em tempos atuais, quando cremos ser melhores do que os homens de passado remoto. Feuerbach, há mais de cento e cinquenta anos, já ensejava com rara consistência dizer o mesmo. Mas é igualmente provável, em vista dos percalços da filosofia (sempre às voltas com antinomias atalhando-a em virtualmente toda questão possível de formular-se), que o tema do divino seja de fato incontornável na atitude humana de pensar. A idéia de Deus parece não ser descartável com provas advindas dos métodos das ciências da natureza e o motivo pode ser o de o pensamento - instrumento crucial na iniciativa científica - mostrar-se irreversivelmente contaminado por essa mesma idéia.
Para sugerir a supressão dos cultos à divindade Feuerbach também tinha como respaldo o cientificismo, ainda na infância à época de sua proposta, mas talvez por força do repertório incipiente de certezas da ciência natural de então tenha escolhido como fundamento espécie de psicologia universal, que sacou da própria idéia de deus cunhada pelo homem nas mais diversificadas manifestações culturais que foi capaz de criar. Entre os principais traços da psique humana arrolados por ele destacam-se por certo dois: o sentimento de dependência do indivíduo perante o quanto considera como exterior a si próprio e a antropomorfização da idéia de deus, não raro intermediada por zoomorfizações que, nada obstante, já se haviam sedimentado a partir de antropomorfizações dos comportamentos animais, bem como daqueles dos vegetais: se deuses assumiram as formas doutros bichos é porque o comportamento destes já havia passado pelo crivo da assemelhação com o comportamento humano ou da mera relação de ambos, àquele tempo já consagrada.
Em vista de tal, não é excessivo afirmar que Feuerbach ofereceu ao seu século e ao seguinte paradigma recorrente na formulação de sistemas profundamente marcantes de interpretação de indivíduo e sociedades, como a psicanálise e o socialismo. Desnecessário observar, se não a persistência intocada desses sistemas, ao menos a de sua essência. Pois, ora, num mundo onde o homem presume decifrada, enfim, a alegoria milenar com que costumava referir-se a uma idéia recorrente de seu ato espontâneo de pensar e que designou, entre outros, com o nome de Deus, num mundo como esse só há lugar para a auto-gestão, para a mais pura responsabilidade, tornando assim desnecessários os instrumentos de dominação usados em todo o espectro de suas intensidades para o exercício das governanças. Afinal é do próprio homem a inteira responsabilidade por todos os traços com que foi pintada a divindade, evidência disto sendo as marcas de antropomorfismo em cada um deles.
A metáfora, possivelmente exclusiva do raciocínio humano, caso aproxime, no ensejo de significar, coisas quaisquer, aproxima-as em primeiro lugar do homem, embora seja mais preciso dizer que opera o reverso, levando as singularidades de nossa espécie a designar existentes tidos como distantes de si em tempo, espaço e idéia. E se em inúmeras ocasiões os três reinos da natureza também carregaram para nós o significado de deus, isto se deu por já estarem carregados da acepção de homem.
De todos os traços que reconhecemos em nós, decerto como o mais característico elegemos a capacidade de compreender. É possível seguir as transformações a que foi submetido em sua história, por exemplo, Deus de Abraão, de princípio criando uma sua imagem, pura assemelhação, supostamente física (seja como isto possa compreender-se) que, nada obstante, discrepava de si em caráter, por tal não merecendo habitar o Paraíso. Assim, sendo-lhe concedida a aparência do criador, da criatura exige-se em seguida imitar-lhe também o modo de agir, isto não significando inexistir no homem o quanto idealizou em Deus, do contrário: talvez não sendo predominante, mas com certeza existente e, por conseguinte, percebida, elegemos essa parte nossa como objeto em cujo sentido evolvermos. O termos plasmado semelhantes traços num ser de abstrusa superioridade, de paradoxais presença, potência e ciência, justifique-se porventura na forçosa atitude paternal a que nos vemos coagidos no cuidado com a progênie, outra face da condição animal e, mais especialmente, da nossa, humana, que igualmente apusemos a Deus. Sem a imposição todo-poderosa, habituada como estava a humanidade a curvar-se ante o domínio pela força, provável é que a empresa evolutiva da mente como hoje a desfrutamos sequer começasse caso não absorvesse também as atribuições da paternidade.
Do viés evolucionista, por conseguinte, e em se partindo do pressuposto consagrado na filosofia de Feuerbach, o de ser a divindade produto da imaginação humana premida pelos revezes de que se via depender o indivíduo na imposição endógene de sobrevivência, as transformações por que passa a idéia recorrente de origem comum de todas as coisas parece ilustrar, além do processo evolutivo da humanidade no reconhecimento de seus próprios atributos, o papel ativo do homem na seleção daqueles quanto creu condizerem com suas aspirações de desenvolvimento pessoal. A seleção natural parece contar também, ao menos no caso humano, não exclusivamente com fatores exógenos, ou melhor, tudo parece indicar o papel decisivo do sujeito humano na escolha dos instrumentos com que responderia à exigências do meio à volta. Eis porventura uma idéia, se não ausente do darwinismo, por certo esquecida por seus cultores: o traço designado como inteligência não é só auto-referente, mas também dominante e exclusivista na evolução do homem.
Uma análise deste tipo pode outrossim levar novas luzes à tese central de Dawkins, a de o entendimento – a inteligência – ser resultante e não causa do processo evolutivo. Ora, do modo como o compreende, o ser humano o toma como traço distintivo seu, isto significando que o ato de apô-lo a coisas quaisquer – e mais especificamente aos deuses – enquadra-se como mais uma de suas iniciativas de antropomorfização do meio. Inteligente ou não, a mecânica intrínseca do universo trouxe-o de fato a configurar-se como atualmente o observamos, em toda diversidade e complexidade. E que reconheça como diversa e complexa a sua determinação de pensar, pela qual não apenas absorve as coisas ao modo de informação, mas também urde estratégias para lidar de maneira útil com elas, em suma, que o homem associe a capacidade de sua inteligência produzir com a exuberante produção testemunhada à volta, tal não significa existir no meio capacidade igual, assim como tantos outros atributos da humanidade usados para fins análogos.
E mais do que sintoma de incontido antropocentrismo (termo aqui utilizado com todo o peso que possa conter da idéia de egocentrismo), o uso humano de metáforas sacadas de sua própria condição é antes recurso pelo qual investe na decifração do desconhecido – ou do pouco conhecido – com instrumentos a si familiares, usando-os como medida geral. Desse modo a atribuição da inteligência ao universo deixa de ser uma presunção formulada sem o cabido vagar e com o fito de tão-só tornar procedentes certas ilações em torno à divindade para mostrar-se como unidade métrica pela qual pode o homem expressar e quantificar a exuberância constatada no seu entorno.
Iniciativas semelhantes se apresentaram no correr do tempo desde pelo menos a Antigüidade, como o atestam os sistemas de filosofia atribuídos a Xenófanes e Protágoras, o deste último, através da máxima que faz do homem medida do todo, como que demonstrando o pressuposto central do anterior, de ser o "noûs" princípio universal. E se erro há nisto, é do mesmo gênero do cometido com freqüência compreensível no âmbito das ciências da natureza, a que se é determinado pela imposição indutiva, pela qual somos instados, nem sempre oportunamente, a projetar os resultados obtidos no processamento das informações do passado no presente contínuo descortinando-se à nossa frente. Quase nunca o jogador, papel que assumimos por destinação, pode elaborar o suficiente o próprio lance na urgência com que se acredita premido pelo entorno a responder-lhe os desafios. Pode-se pensar: precipitação milenar essa de atribuir ao mundo ou aos deuses inteligência, poder criador. Sim, deve-se admitir. Mas qual outra maneira apresentaria a bastante eficiência em expressar essa admirável conivência de nossa capacidade abstrata de conceber e a supostamente espontânea geração na natureza? Não há, pelo menos em princípio, erro intrínseco em utilizar-se uma medida em lugar de outra na interpretação da natureza, mas sim nos fins dados ao resultado de tal operação.
Doutro lado e por fim, desnecessário fosse talvez sinalizar para um especialista em processos biológicos a íntima conivência da estrutura autônoma organizando a matéria e sua resultante inteligência humana: talvez não convenha chamar as duas pelo mesmo nome, assim como não é adequado chamar de ser humano os genes em seu interior, senão como recurso poético. E não se despreze, na empresa de compreender os meandros da decifração da natureza pelo homem, a presença do que hoje denominamos poesia, em particular quando as idéias de ciência e sagrado ainda eram uma só. Se definida, de maneira rasa, como a forma de aproximar, em discurso, o quanto no universo é tido por estar demasiado apartado, ou seja, de pôr em relação o que no mundo não parece relacionar-se ou, em suma, de criar metáforas, a poesia tem tomado para si o papel do batedor atrás do qual pode seguir a caravana da ciência no seu ritmo próprio, embora nem sempre cauteloso, como quer fazer crer a quem simplesmente a vê passar.
Rio, 02 de maio de 2008
Waldemar M. Reis
Arremate
O texto acima apareceu quando eu ainda lia o livro de Dawkins sobre Deus. Veio na forma de reação ante uma seqüência de argumentações intoleráveis, mormente quando formuladas por profissional da ciência. Refere-se, por conseguinte, à parte até então conhecida por mim do trabalho desse cientista, muitas de cujas assunções iniciais são retomadas nos capítulos finais, ganhando apenas maior nitidez, não maior poder de persuasão. Tratou-se, de minha parte, de exercício dedutivo do que seria como um todo a obra a partir do conhecimento de uma de suas seções, talvez a mais substanciosa e significativa, embora não a mais feliz. Deixei-o como o concebi e reservo para este arremate informar que Dawkins, mais adiante no livro e sem o esperado brilhantismo, trata a crença em Deus do viés evolucionista, sim, e conclui ser ela não um dos traços adaptativos, mas manifestação inconveniente de alguns deles. Argumenta com o exemplo da navegação noturna de vespas e outros insetos, que tem por guia os corpos celestes, e o poder mortal exercido pelo fogo sobre esses animais por contarem com semelhante habilidade. Num processo análogo a autoridade divina seria manifestação equívoca da inclinação da natureza humana para o respeito pelos indivíduos mais velhos em vista de sua experiência, do conhecimento que detêm: desse viés Deus é demonstrado como o são as doenças congênitas, ou seja, como desvios, nem sempre inúteis de todo, na rota adaptativa da espécie.
Rio, 20 de maio de 2008
terça-feira, janeiro 01, 2008
Nota sobre intolerância e doutrina liberal
Entretanto, se tomada como se anunciou, como crença, no sentido de profissão de fé, a afirmação de ser possível convivermos não obstante divergirmos, quando posta na boca de quem esteja seguro de possuir as melhores intenções ao dizê-la, parece pressupor um estado contrário ao observado na associação humana, a saber, de paz, compreensão, enfim, de tolerância. À primeira vista parece sugerir a prática disto mesmo, da tolerância, digo, parece ensejar a constituição de indivíduos permanentemente capazes de relevar o quanto na atitude alheia lhe possa ser infenso, mas não, talvez, o seu aperfeiçoamento com vistas a não empreenderem nada a impedir o bem-estar dos demais. O bom senso nos indicaria tratar-se de ambas as sugestões. O mau treinamento na boa convivência obriga quem sofre suas conseqüências a tão-só tolerar, atitude imprescindível enquanto o uso sistemático da auto-crítica pelos ofensores não a torna desnecessária. Atingido, assim, um estágio generalizado de ações individuais selecionadas, imagina-se que os pontos de dissenso permaneceriam existindo, embora seja igualmente de supor não consistirem em fatores a cobrarem complacência acentuada.
A experiência histórica mostra-nos também isto: dentre as divergências há as intoleráveis, as quais o mundo como o conhecemos vem, via de regra, negligenciando, vem fingindo, de um lado, não praticar atos merecedores de grande tolerância – quando não de punição severa – e, de outro, não dar fé daqueles de que são vitimas – numa sorte de indiferença à imitação da estóica, embora prenhe de ressentimentos. Definindo-o de um modo apressado, o divergir constituiria oposição frontal de indivíduos a condições tidas como contrárias ao que é fundamental em suas existências. Tendo-se em conta isto, ou não há entre nós consenso quanto a quais sejam as condições adequadas e mesmo quanto a se consistem de fato em fundamento existencial do indivíduo (disto deduzindo-se a incompatibilidade geral e incontornável de cada um para com os demais), ou a capacidade humana de indulgenciar é demasiado reduzida. Talvez observem-se ambas as situações.
Excetuando-se as iniciativas pessoais, sobre as quais podem incidir escolhas religiosas, há duas tentativas seculares clássicas de equacionamento do bem-estar comunal experimentadas no correr do último par de séculos ditas, uma, liberal, outra, socialista. A contraposição dos nomes e sua aplicação aos fatos sugerem, a uma abordagem imediata, certa indiferença para com a causa coletiva no primeiro e, no segundo, incompatibilidade de gregarismo e liberdade. O modo de entender o conceito de liberdade é o referencial para o sugerido na oposição dos dois termos: se designa a obediência do sujeito a tudo quanto possa ditar-lhe o desejo a despeito do mal-estar alheio, o liberalismo vem a ser o embate perpétuo de individualidades num meio político de regras demasiado instáveis e o socialismo doutrina cuja missão é o estabelecimento de limites para a atuação pessoal com vistas ao bem geral; mas se liberdade se define como a manifestação de quem, justo por ter na mais alta conta o próprio bem-estar, entende a estreita dependência deste para com o dos seus consociados, então as diferenças entre liberais e socialistas deixam de ter sentido.
Um indivíduo livre neste último sentido é, parece-me, tudo quanto pode desejar-se de alguém, mesmo se quem o deseja toma como verdadeiro o primeiro dos significados de liberdade. Muito embora se espere de quem se crê livre desse modo – o primeiro – a firmeza bastante para transigir em face dos excessos previsíveis de outrem compartilhando do mesmo credo, a prática fornece constantemente dados demonstrando a variedade de lindes, nesses professos liberais, para a tolerância das veleidades alheias. Pelo que o liberalismo, embora ensejando pronunciar-se em prol de uma irrestrita liberdade, termina por apor-lhe condições, ainda que de contorno incerto, assim dando margens a variegadas interpretações que o tornam, em realidade, o preceito bárbaro que de maneira tão canhestra tentou aprimorar.
Ora, o liberalismo pontuado de regras de conduta termina por ser, à primeira vista, justo aquele professado por quem tem na mais alta conta o próprio bem-estar e por tanto cuida do bem alheio por conhecer o quão entremeados este e o seu estão. Mas se termina por incorrer em erros ou em burlas, é por não se constituir sobre tal premissa, a do bem comum em prol do bem individual, antes usando-a como sorte de estatuto provisório cujo fito, nada inocente, é tão-só protelar uma pré-concebida ação livre à moda libertina para quando oportuno for. Por trás da transitória regulação da liberdade, enfim, jaz ad aeternum a esperança do indivíduo de perfazer atos livres no sentido em que, no fundo, crê, ou seja, a despeito do assentimento dos que a si estão associados. Quanto à oportunidade, ela é, infalivelmente, aquela em que o ato inaceitável passará desapercebido ou em que terá de ser universalmente tolerado, sem alternativa: em suma, todo liberal autêntico, no primeiro dos sentidos apontados acima, é aquele que aguarda a circunstância em que terá poder suficiente para predominar, desse modo desfrutando os seus atos da invisibilidade ou da ostensão próprias de quem os pratica do viés dominante.
Uma das espertezas da conhecida doutrina liberal em voga nos meios políticos e econômicos desde pelo menos os confins do século XVII é anuir ao conhecido bordâo reconhecendo oportunidade para todos. Ora, pergunte-se, com razão: oportunidade de que? para que? Para ocupar – ou de ocupar – os postos exclusivos e reservados aos quantos podem gozar da própria liberdade como sói, por sob os disfarces, professar a doutrina liberal. O resultado evidente é a própria realidade na qual estamos imiscuídos, de que falávamos no início, sortida de todo tipo de desentendimento, uma vez todos – ou praticamente todos – terem por desejo maior galgar a pirâmide social ao encontro desse lugar por cujas duvidosas virtudes está-se desde berço seduzido. Quem escapa à sina de tal aspiração é decerto por ser dotado de dose maior de tolerância ou por achar conveniência no lugar, embora ordinário, que ocupa. Destes muitos há que não recusariam, caso se apresentasse graciosamente, a ocasião de ascender: são os oportunistas no sentido lasso e não seria de impressionar se um estatístico mostrasse que existem em proporção muito maior do que a suposta aqui.
Interessante é notar o quão cioso é o homem de sua escalada na descoberta de bens tecnológicos cujo fim, naturalmente, é incrementar o conforto. A despeito de vivermos num tempo de crescimento em progressão geométrica da geração de tecnologia, futurólogos teimam em supô-lo infinito, inesgotável. É de esperar, na medida em que igualmente não tem peias o desejo de bem-estar do indivíduo humano. Ao lado disso, pouco ou nada se espera, ao menos na prática, de aperfeiçoamento da própria natureza do homem, a saber, do seu caráter, de sua capacidade de melhor conviver. Do viés da doutrina liberal, pouco se espere nesse sentido: melhorar a natureza humana seria conspurcá-la, privá-la de seus anseios de liberdade ou, antes, de sua livre manifestação. Uma das pedras de toque do liberalismo, inclusive, é o atestamento e a defesa da diversidade de anseios: nem todos querem o mesmo, razão de muitos estarem satisfeitos onde estão, não necessitando atingir o topo da pirâmide social para sentirem-se plenos. De uma certa maneira têm razão os liberais: quiséramos todos as mesmas coisas e não haveria necessidade de tanta publicidade, de tanta estratégia de mercado direcionando o desejo de muitos para certas coisas. Mas a satisfação a que se referem pode, em grande medida, ser nomeada 'resignação', visto não contarem os resignados com o suficiente para sequer almejarem sair de onde estão e rumarem para um posto imediatamente acima. Se consideradas as condições reais desses lugares pode ter-se uma razoável medida do poder do instinto vital, fazendo os seus ocupantes preferirem ser como são a não serem de modo algum. E, é claro, um bom liberal não deixaria de tirar partido de escolha assim instintiva a lhe proporcionar hordas de mãos laboriosas sustentando a sua privilegiada posição.
Rio, 01 de janeiro de 2008
Waldemar Mendonça Reis
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported License