sábado, fevereiro 21, 2009

De literatura, caos e pensamento (um caminho possível entre três temas)


"Que a rosa não se desfaça em borboletas e da macieira não brotem diamantes, não é mais surpreendente que a rosa, as borboletas, a maceira e os diamantes". Antonio Caetano


O fantástico é o único ramo possível da literatura, já dizia Borges. Por mais realista que tente ser um autor, inevitavelmente produzirá situações inusitadas ou não causará interesse. A rigor é a vida mesma fantástica por natureza, por ser imprevisível.

De hábito o fantástico é definido em oposição ao corriqueiro, àquilo de cuja verdade cremos possuir provas bastantes. Seu sinônimo constante tem sido o inverossímil. Mas o que, nesse mundo turbulento, há de mais fantástico do que o comezinho, a repetição? Como não espantar-se também diante da verdade?

Embora não nos demos conta, o habitual e o verdadeiro são autênticos milagres, principalmente quando é possível conhecê-los de antemão, digo, quando é possível prevê-los. O normal é que nos inteiremos de que são um e outro depois de serem fatos e depois de experimentarmos longa ignorância quanto ao que haveria de vir. Em fim de contas o verossímil termina por ser das expectativas a mais incerta.

Assim, se é mister classificar as literaturas e evitar as discrepâncias imediatas na conceituação das classes, que se o faça de maneira mais trivial, por exemplo, segundo a temática: a do cotidiano, no qual se incluem as paixões; a da especulação técnico-científica; a do mistério ou suspense, que abriga desde os crimes até o sobrenatural; a das idéias, como os ensaios, a filosofia e a vulgarização da ciência; e por fim a variada. A rigor é muito difícil encontrar obra exclusivamente classificável num único tipo.

Em virtude da natureza promíscua do modo verbal de o pensamento expressar-se, todos os temas perpassam com mais ou menos contundência toda e qualquer obra; o fato de predominar um tipo não impede a participação dos demais. O problema está em saber se tal ocorre de modo procedente. Por exemplo: se numa ficção científica a tecnologia, a ciência e a filosofia aparecem torcidas, isto é de somenos importância, o mesmo ocorrendo no caso de nos temas fictícios do cotidiano filosofar-se de maneira canhestra ou ocorrerem aparições do domínio sobrenatural.

Estranho, se não mesmo incômodo e intolerável, é o tema das idéias ser pontuado de argumentos sem consistência ou informações enganosas, salvo se está usando do artifício da ironia. Isto decorre do caráter de crônica desse tema, o único de entre os listados a ter compromisso incancelável com a verdade, com a realidade. No caso de insistir-se no uso do termo ’realismo’ para classificar alguma das literaturas, talvez seja este o tipo que mais o merece.

Semelhantes ocorrências derivam de circunstâncias variadas, visto a vulgarização da ciência ser em geral atribuição de leigos, jornalistas mais ou menos especializados no tema, ou de cientistas que, se fluem nas linguagens usadas nos respectivos ramos da ciência em que investigam, de hábito articulam mal essas idéias na linguagem comum. Há exceções, é natural, mas em vista de sua raridade fazem história, caso como o de Asimov, que terminou por dedicar-se exclusivamente à literatura, deixando de lado a prática letiva da ciência.

Entretanto as imperfeições na divulgação da ciência, se não mesmo na própria ciência, se devem ao manejo canhestro dos conceitos. O problema começa já na filosofia, responsável, na estrutura acadêmica, pelo estudo destes. Passando ao largo das recentes publicações destinadas ao público em geral, algumas das quais de boa qualidade, freqüente-se por exemplo o repertório de ensaios de filosofia ditos profissionais para se ter uma idéia do que é não fazer idéia daquilo sobre que se discorre. Justiça feita às exceções, pode-se dizer que o fantástico se manifesta ali sob a forma do absurdo, quando não cede lugar ao irrelevante.

É natural também que se exercite diante de quaisquer textos, e não apenas nos deste último tipo, o viés crítico, o qual não passa do continuado cotejo com a experiência pessoal com vistas à estimativa do que ao leitor parece mais ou menos próximo ao que considera como realidade. Na literatura de divulgação científica isto é de importância particular na medida em que somos circundados por quantidade crescente de artefatos derivados do estudo metódico do mundo, e não apenas para termos idéia de como manejá-los, mas também para o fazermos com a devida cautela.

Um dos exemplos mais recentes da penetração das descobertas de físicos, químicos e biólogos no quotidiano é a idéia de que ’tudo é quântico’, embora boa parte de quem o afirme o faça sem qualquer idéia do que ’quântico’ vem a ser - e imagino que se o soubesse mencioná-lo-ia com maior parcimônia. Já se tornou senso comum explicar o mundo por meio do funcionamento ainda pouco compreendido do que vai no minucioso abismo hoje tido por cerne da matéria, atitude em nada censurável em vista do padrão universal de raciocínio do homem, que não encontrou ainda alternativa eficiente para a lógica causal.

Assim, se admitimos que, embora organismos estudados e descritos na biologia, somos constituídos de substâncias que, por sua vez, derivam das combinações de outras elementares, derivando o comportamento destas da mecânica da estrutura em seus cernes, ditos atômicos, e estes, por fim, funcionando tal e qual o prescrevem os invisíveis efeitos em dimensões ainda menores, chamadas as dos ’quarks’ e similares, ora, então não deve haver dúvida quanto a estar tudo determinado desde esse universo quântico. É natural que de muitos eventos se encontrem as causas em dimensões mais imediatamente observáveis, equivalentes ou mesmo maiores do que a dimensão em que esses eventos se dão. Mas mesmo estas terão sido causadas ou podem ter suas causas atribuídas a essa dimensão ínfima, talvez mais em virtude do hábito do pensamento de acreditar que do menor deriva todo o maior do que do fato de ser precisamente assim que a realidade é.

Dado o repertório de conceitos fundamentais - com os quais se torna possível todo e qualquer raciocinar - ser um e o mesmo para o leigo e para o experimentado cientista (embora utilizado por um e por outro de maneiras distintas), e desde que é a própria ciência a responsável primeira por esta recente ’moda quântica’, nada mais natural que se pense no cientista como o primeiro a estar seguro de ser ’tudo quântico’. Tal não me pareceu ser verdadeiro, entretanto, à leitura de um breve artigo sobre pesquisas interdisciplinares de biologia e física quântica: só agora esses pesquisadores começam a assegurar-se de que somos mesmo determinados pelas atividades inusitadas dum mundo percebido apenas nos sintomas de maquinaria que só outras máquinas são capazes de detectar.

Constatar tão tardia certeza por parte da ciência, já passados mais de cem anos da predição da mecânica quântica e mais de oitenta de efetivo aparecimento do seu estudo, causou-me o espanto de quem pilha a si no curso de uma indiscrição ou dos que de súbito se inteiram de a realidade ser inteiramente diversa do que sempre acreditaram. A sensação é comparável - e o digo sem temor de incorrer no menor exagero - á descoberta, em obras de outro gênero literário, do que tornou Bentinho num Dom Casmurro ou de que o amor de Riobaldo não era outro homem. Em que acreditava a ciência antes de certificar-se de que até mesmo o pensamento parece dever-se ao comportamento de quarks, múons e outras subpartículas? Será que, na contramão do que afirmou Laplace, a ciência mais recente ainda tinha Deus por hipótese de causa universal passível de investigação por meio de instrumental ainda tão tosco? Ou esperava ela dar com outro conjunto de eventos com maior grau de probabilidade de ter atribuído a si o status de causa primeira?

Afora o desfrute dessa emoção típica da apreciação de obras da literatura de qualquer tipo, há também aquelas resultantes das especulações privadas em torno à constatação. Em primeiro lugar a de a realidade - a que nos habituamos considerar como ordenada, como um cosmo, e a despeito de com constância experimentarmos eventos inclassificáveis - ter por lastro uma dimensão na qual as ocorrências têm de ser interpretadas, desde esta dimensão vivenciada por nós, como enigmáticas ou contrariadoras do senso comum. Desse viés o tempo parece mesmo operar exumações cíclicas de idéias, como a dos gregos antigos de ser o caos a semente do cosmos.

Até o pensamento, em cuja pressuposta ordem somos induzidos a apostar, se de fato organizado, o é por obra de força ou esforço ainda hoje desconhecidos. O artigo mencionado centra-se nas observações do comércio de substâncias no interior das células, de como tornou-se possível flagrar a formação de processos regulares a partir das operações dos quanta, das quais logramos estimar apenas a probabilidade. Começa a ter-se alguma idéia de como o que chamamos de acaso se configura no que cremos ser constância. Em seguida os depoimentos dos cientistas entrevistados migram para especulações na área do funcionamento mental, é claro, visto conhecer-se o papel das interações químicas na constituição de vários de nossos pensamentos, como as emoções, e inclusive os manipularmos com substâncias exógenas já faz algum tempo.

Aponto ao menos mais um dos sentimentos experimentados à leitura do artigo e já referido acima quando se ponderou o desconcerto que pode advir de uma consideração menos parcial do comezinho: não é à toa que a regularidade seja mais assombrosa do que o acaso, já que em aparência é filha deste e em aparência o contraria, embora no momento - e justo pelo mesmo motivo - pareça assombroso que tal nos possa assombrar. Pois começam enfim a ruir as barreiras separando caos e cosmos, coisa que nos é possível realizar desde há muito, já que de há muito estamos de posse dos instrumentos para o fazer (desde, pelo menos, os tempos dos antigos gregos). Além do mais não é de hoje que descobrimos, por exemplo, nossa incapacidade de exprimir com precisão a medida de algo tão prosaico como uma barra de metal, de dizer com a exatidão desejada o momento de ocorrer um fenômeno qualquer e, enfim, de fazer corresponderem as respostas invariáveis fornecidas pelos números e a inquietude das coisas. E pensar, enfim, parece ser tão-só um desejo, o esforço de constituir-se em algo que ele não é, o desejo de escapar da natureza caótica e tornar-se numa quimera que, em face do comportamento mutante de todo o universo, não se sabe o que o inspirou.

Rio, 15 de fevereiro de 2009

Waldemar M. Reis



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