"Que a rosa não se desfaça em borboletas e da macieira não brotem diamantes, não é mais surpreendente que a rosa, as borboletas, a maceira e os diamantes". Antonio Caetano
O fantástico é o único ramo possível da literatura, já dizia Borges. Por mais realista que tente ser um autor, inevitavelmente produzirá situações inusitadas ou não causará interesse. A rigor é a vida mesma fantástica por natureza, por ser imprevisível.
Embora não nos demos conta, o habitual e o verdadeiro são autênticos milagres, principalmente quando é possível conhecê-los de antemão, digo, quando é possível prevê-los. O normal é que nos inteiremos de que são um e outro depois de serem fatos e depois de experimentarmos longa ignorância quanto ao que haveria de vir. Em fim de contas o verossímil termina por ser das expectativas a mais incerta.
Em virtude da natureza promíscua do modo verbal de o pensamento expressar-se, todos os temas perpassam com mais ou menos contundência toda e qualquer obra; o fato de predominar um tipo não impede a participação dos demais. O problema está em saber se tal ocorre de modo procedente. Por exemplo: se numa ficção científica a tecnologia, a ciência e a filosofia aparecem torcidas, isto é de somenos importância, o mesmo ocorrendo no caso de nos temas fictícios do cotidiano filosofar-se de maneira canhestra ou ocorrerem aparições do domínio sobrenatural.
Semelhantes ocorrências derivam de circunstâncias variadas, visto a vulgarização da ciência ser em geral atribuição de leigos, jornalistas mais ou menos especializados no tema, ou de cientistas que, se fluem nas linguagens usadas nos respectivos ramos da ciência em que investigam, de hábito articulam mal essas idéias na linguagem comum. Há exceções, é natural, mas em vista de sua raridade fazem história, caso como o de Asimov, que terminou por dedicar-se exclusivamente à literatura, deixando de lado a prática letiva da ciência.
É natural também que se exercite diante de quaisquer textos, e não apenas nos deste último tipo, o viés crítico, o qual não passa do continuado cotejo com a experiência pessoal com vistas à estimativa do que ao leitor parece mais ou menos próximo ao que considera como realidade. Na literatura de divulgação científica isto é de importância particular na medida em que somos circundados por quantidade crescente de artefatos derivados do estudo metódico do mundo, e não apenas para termos idéia de como manejá-los, mas também para o fazermos com a devida cautela.
Assim, se admitimos que, embora organismos estudados e descritos na biologia, somos constituídos de substâncias que, por sua vez, derivam das combinações de outras elementares, derivando o comportamento destas da mecânica da estrutura em seus cernes, ditos atômicos, e estes, por fim, funcionando tal e qual o prescrevem os invisíveis efeitos em dimensões ainda menores, chamadas as dos ’quarks’ e similares, ora, então não deve haver dúvida quanto a estar tudo determinado desde esse universo quântico. É natural que de muitos eventos se encontrem as causas em dimensões mais imediatamente observáveis, equivalentes ou mesmo maiores do que a dimensão em que esses eventos se dão. Mas mesmo estas terão sido causadas ou podem ter suas causas atribuídas a essa dimensão ínfima, talvez mais em virtude do hábito do pensamento de acreditar que do menor deriva todo o maior do que do fato de ser precisamente assim que a realidade é.
Constatar tão tardia certeza por parte da ciência, já passados mais de cem anos da predição da mecânica quântica e mais de oitenta de efetivo aparecimento do seu estudo, causou-me o espanto de quem pilha a si no curso de uma indiscrição ou dos que de súbito se inteiram de a realidade ser inteiramente diversa do que sempre acreditaram. A sensação é comparável - e o digo sem temor de incorrer no menor exagero - á descoberta, em obras de outro gênero literário, do que tornou Bentinho num Dom Casmurro ou de que o amor de Riobaldo não era outro homem. Em que acreditava a ciência antes de certificar-se de que até mesmo o pensamento parece dever-se ao comportamento de quarks, múons e outras subpartículas? Será que, na contramão do que afirmou Laplace, a ciência mais recente ainda tinha Deus por hipótese de causa universal passível de investigação por meio de instrumental ainda tão tosco? Ou esperava ela dar com outro conjunto de eventos com maior grau de probabilidade de ter atribuído a si o status de causa primeira?
Até o pensamento, em cuja pressuposta ordem somos induzidos a apostar, se de fato organizado, o é por obra de força ou esforço ainda hoje desconhecidos. O artigo mencionado centra-se nas observações do comércio de substâncias no interior das células, de como tornou-se possível flagrar a formação de processos regulares a partir das operações dos quanta, das quais logramos estimar apenas a probabilidade. Começa a ter-se alguma idéia de como o que chamamos de acaso se configura no que cremos ser constância. Em seguida os depoimentos dos cientistas entrevistados migram para especulações na área do funcionamento mental, é claro, visto conhecer-se o papel das interações químicas na constituição de vários de nossos pensamentos, como as emoções, e inclusive os manipularmos com substâncias exógenas já faz algum tempo.
Rio, 15 de fevereiro de 2009
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