domingo, fevereiro 08, 2009

Escatologia pós-bohemiana


... e naquele dia mesmo haveria Deus de estranhar alguns dos resultados da Criação. Mais O impressionou o modo de adaptar-se da cadeia alimentar, certas espécies de bichos habituando-se ao sabor da carne de outras.
Não provera Ele, ora, o enlace incontornável, oferecendo-lhes os frutos em troca do transporte das sementes que abrigam para que germinassem noutros lugares? Era preciso ir além? Passar às folhas? Degustar as flores?
A um animal apenas, pequeno e delicado, mas não indefeso, concedeu aproximar-se destas e, inclusive, de fartar-se com o seu pólen, desde que auxilia o vento a dispersá-lo sobre suas semelhantes. Eram agora devoradas, mal saíam de botão.
Decerto por se demorarem mais no estômago, as folhagens contentavam os gulosos, muitos sequer dignando-se a erguer o pescoço, consumindo aquelas rasteiras, que ali dispusera com o fito de suavizar-lhes o contato do passo com a pedra.
Generalizado, o hábito de servir-se de partes vitais de outros seres teria um só limite, o da ingestão de indivíduos por inteiro, e daí para a animalada toda olhar-se de través foi passo. Entretanto muitos, incontáveis, alegrava-Se de constatar, permaneciam irredutíveis, resignados a não tornar seu o alimento exclusivo da terra.
A rigor, tudo, absolutamente tudo sobre a terra servirá para alimentá-la, mesmo enquanto vivos, regalando-a com seus dejetos que legião de animálculos refinam até o estado puro da substância. A ela cabem inclusive os frutos, os esquecidos ou desprezados pelos bichos: são, por assim dizer, o alimento comum.
Mas somente a ela, a terra, são reservados os seres - a ela e ao quanto vive inumado em seu ventre - e somente depois de mortos. Antes disso têm por missão apenas viver, comprazer-se da condição de vivos, assim como Ele próprio, que não tem escolher.
Nisso, pensa, reside a semelhança, a imagem de Si dispersa por tudo quanto há: o imperativo de existir, de persistir, da vida. Pois inevitável é que deixe marca Sua no que cria, nada havendo a ser imitado, de princípio, senão Ele mesmo. Faça-se o diferente, foi o que pronunciou, mas eis que depara ser que, se distinto de Si, o era por meramente ocupar espaço diverso do Seu: o Outro.
Muito tempo se passaria até convencer-Se Deus de que, se Lhe era o Outro infinitamente semelhante, nada obstava serem igualmente numerosas suas diferenças: pouca oportunidade sobrava a Si e ao Companheiro de privarem, dada a faina interminável de criar.
Iniciada, a obra não teria termo, perduraria: com o Outro vem à luz o lugar onde estavam e a percepção recíproca; vem à luz, por conseguinte, a própria luz e com ela miríades de ocorrências derivadas que por vezes O fazem sentir-Se qual mero observador do modo de se encadearem, mero descobridor das conseqüências do ato único, este, sim, criativo de fato.
Assim teria de ser. Uma questão de... Vontade - foi atalhado. De vontade. Em que, do mundo, não perpassa Tua Vontade, Pai? Por isso, imitando-O, tudo cria ou assim o crê. A bem dizer, re-cria. Mas seja o que for, o faz por querê-lo. E por tal transgridem-se Tuas regras, se é que as há. Por teres multiplicado - diversificado - a Vontade, confinando-a em cada partícula de Tua Obra.
Com insondável humildade meneia a cabeleira e sorri. Também nisto diferiria do Outro: ao menos por ser mais antigo, por ser O Criador, mas certamente por Lhe importar pouco a questão. O que é Ele sem mais nada? Nada, é evidente. Nem Ele próprio. Eis o que foi até criar.
No entanto, foi Algo, Algo na iminência vertiginosa de nada ser. Algo na ubíqua contemplação de Sua quase nula unidade. Fremia, assim, precipitando-se no abismo sem chão e foi tremente que bramiu o ’Fiat’, do qual jamais se ouvirá o eco pois não existirá confim no qual venha refletir-se. Ainda hoje, passado tanto tempo, apura o ouvido para escutá-lo e admira-se de que tenha assumido diversidade assim de estados, de densidades, a ponto de simular a existência de modos distintos de perceber, como o ver e o tocar, o pressentir.
Já andava longe a aurora do sétimo dia e quando não atentava, era como se houvesse silêncio, como aquele quebrado com O Verbo. E então preferia dar a este ouvidos a ser aterrado pela lembrança anterior, mas quase não o reconhecia como o Seu próprio grito. Revisitava assim todo recanto da Obra em busca do motivo e, embora se encadeasse tudo tal e qual determinara em Seu comando único, singularidades, não menos conseqüentes, teimavam em insinuar-se nos interstícios.
Fizera o bom. Concebeu-o para durar todo o sempre. Com seu urro creu banir a dor e constituir uma trama da qual estivesse ela de todo ausente, um mundo de criação pura, onde todo e cada indivíduo permaneceria, com a condição de auxiliar os demais a permanecerem: daí a idéia de os frutos serem o alimento, não as sementes, não a folhagem, não os corpos. Mas mesmo isto, a subversão de Seus Desígnios Primordiais, parecia aninhar-se entre estes como se eles próprios foram.
Também isto o impressionou, digo mais, impressionou-o muito, muito mais do que os desvios mesmos: que O desgostasse, mas que fosse, por outro lado, capaz de compreendê-lo, de entendê-lo como um derivatório a mais do Seu próprio ato. E, ainda que não entendesse como o compreendia, pascentou-se com o Seu continuado descanso.
Entretanto, intranqüilo e muito breve foi o Seu sono. As vagas do ’Fiat’ chegavam-lhe agora muito desvirtuadas, tanto que despertou. Contemplando a diversidade, percebeu esparsos alvoroços. Aproximando o olhar, deu com cena inimaginável, mesmo por sua infinita capacidade de criar, já que os bichos, embora caçando-se reciprocamente, não mais o faziam como justificavam: para saciar a fome e por se-lhes terem tornado sápidas as carnes dos semelhantes.
O Bem, em nome do qual pronunciara o universo, pareceu-lhe por inteiro dissipado. Responsável por tal fora uma criatura nova, aparecida aquando de Seu breve Repouso Sabatino, criatura singular que, além de matar sem fome ter, dizia fazê-lo para aplacar carências outras, como o agravo e o tédio. Fosse tanto insuficiente, dizia-se ainda feita á imagem e semelhança d’Ele, Pai.
Sentiu Deus, então, desejo de rir, como se para distrair certa cólera que, qual a do princípio de tudo, insinuava apossar-se de Si. E foi assim, rindo, que Se voltou para o lado, ainda esboçando num murmúrio o comentario por fazer, quando Se deu conta de estar só. Só é força de expressão, pois rodeava-o tudo quanto criou. Mas não podia referi-lo sem provocar transtornos, um dos quais, chegara a imaginar, o de estimular a vanidade no interlocutor.
Por isso para a Criação reservara apenas os ouvidos. Escutava-a como música e como música a tolerava, compreendia e apreciava. Havendo de dizer, dirigir-se-ia ao Outro, de constituição robusta o bastante para suportar o vigor de Sua voz. Não O encontrou, entretanto. Não O encontrava, a bem da verdade se diga, desde o meio desse interminável Sabá, desde quando Se deu conta dos primeiros desvios do que criou.
Estendeu, então, uma vez mais o olhar para os confins do todo, certo de encontrá-Lo sem demora: foi preciso mais de uma vez ajustar suas lentes para o diminuto, depois para o gigantesco e assim sucessivamente, até admitir que o Outro se dissipara. Tempos estranhos os que se seguiam: os do infinito Sábado à noite.
Por primeira vez cedeu à própria censura: descansara demais enquanto algo na Criação operara o inesperado e indesejável. A Obra tomara rumos próprios e em aparência incontornáveis. Veja-se só, dizia então para Si, como agem essas diminutas e presunçosas criaturas: em seu delírio imaginam-se concebidos à Minha imagem, embora não saibam dizer como sou (naturalmente, pois jamais me viram!), e matam-se em Meu nome, matam-se por achar cada qual saber mais sobre Mim do que os demais. A isto chamam de desagravo.
Parte deles cria ser bom o Deus que supunha conhecer, sendo maus os deuses conhecidos pelos restantes. Mecanismo demasiado simplista, gracejou Ele. À parte má emprestavam imagens e, aproximando o olho, viu Deus nessas faces a Sua própria, mas pintavam-nas quase sempre de vermelho, bem como ao corpo, e lhes apunham chifres, por vezes serpentes e entre as pernas uma invariável cauda.
E O adoravam! Isto era de fato extraordinário: adorá-Lo. Não fora com esse fim que criara. Quisera apenas companhia, seres que apenas reverberassem a existência, atributo único ao qual devia o ’Fiat’ e a Vontade, que O mantinham a distância segura do nada. Descansara, inclusive, nesse sétimo dia, por confiar nas propriedades desse atributo, a principal delas a meta de alcançar ou produzir o bem. Por isso retirara-se.
Mais adiante ouviu-os remoerem suas dores, delas a maior, para Seu assombro, a ignorância: pelo menos possuem alguma ciência de si, refletiu, não são de todo parvos, portanto. Mas a referida ignorância era singular, visto excederem em desejo o conhecimento deles próprios e do suficiente para susterem suas vidas efêmeras. Sequer os satisfazia a presunção de conhecê-Lo, pois nisso criam-se doutores, cada qual com suas convicções dando cabo dos restantes.
Desejam verdadeiramente conhecer a Minha origem, observa e ri entre dentes na ausência do Outro, para quem o diria. Ora, se nem mesmo Eu posso com segurança - e alguma tranqüilidade - dizer donde vim... Donde teriam sacado idéia tão estapafúrdia? Escutou falarem de profetas, em cujos desvarios ouviram mensagens Suas ou dalgum incercessor Seu. O teor, obsessivamente amargo, girava em torno dessa ignorância singular e repetia-se era após era.
Muito O impressionara o quanto sabiam de Si. Natural era que O intuíssem, pois guardavam Sua própria essência, como tudo mais; mas que conhecessem detalhes tantos da Obra e do Criador, incluindo a presunção de Lhe suporem origem, ora, isto era definitivamente insustentável. Ao fim de tais considerações, lembrou-Se de um certo diálogo, entretido não fazia muito, ainda pela manhã, cujo tema foi Vontade e transgressão.
Soube assim que deveria voltar-se, de imediato e ainda que só dessa vez, para onde dera as costas desde o primeiro dia, aonde não queria nem deveria retornar, mas assim mesmo o fez, mesmo sob o risco de pôr a perder a Obra toda: a mera proximidade seria o bastante. Creu não haver perigo em enviar de Si apenas o olho, mas nada viu.
Restou-Lhe então ir até a borda e usar de toda a Sua força para não ser tragado pela voragem. E ali pressentiu, a distância prudente do abismo colossal constrangendo-se sem detença na direção de ponto ínfimo e inatingível afundando-se no nada, a presença de algo, diga-se, de algo criado, pois como que ouviu ressonância do ’Fiat’ embrenhando-se no remoinho. Tratava-se de sonoridade singular, a de corpo triturando-se misturada a lamúrias ou gemidos de prazer frívolo: Ele não soube precisar.
Num esforço titânico afastou-se com lentidão, não por tristeza, pois não Se permitia entristecer: por profundo assombro. Sustentáculo da Criação, a Vontade obedecia à sua própria natureza, proporcionando a cada existente a determinação de durar. Esta, por sua vez, deu ensejo aos seres de se valerem de não importa o quê para a cumprirem, transmutando Vontade em desejo. Tal desespero, por fim, fez-se em método, estratégias por cujo intermédio melhor se lograva a duração.
E de apenas ser, de apenas o desfrute da Criação, chegou-se ao conhecê-la como condição desse desfrute. Mas o que levara o Outro a lançar-se no vazio? Ser como Ele? Ora, isto nem mesmo Deus era capaz de responder. Pois era o Outro como Ele, era-Lhe infinitamente semelhante - embora infinitamente distinto também. Tal não Lhe bastara? Tinha de saber como iniciara, donde viera, quando nem Ele próprio o sabia? Caso o soubesse, é claro, tudo o saberia como de nascença tudo sabe de Si.
Então percebeu Deus que tais pensamentos mitigavam-Lhe o esforço de esquivar-Se do vórtice. Concentrou-Se por um instante e logo estava de volta ao Seu retiro. Considerou uma vez mais aqueles animais presunçosos e litigiosos, crias de Sua cria, era-Lhe evidente agora, e cogitou de emendá-los. Depois pareceu esquecê-los, estirando-Se de novo no catre, donde mirava boa parte do universo: se assim os fez a Vontade, pensou, a Vontade os refará.
Rio, 08 de fevereiro de 2009
Waldemar M. Reis


Um comentário:

AC disse...

Deus o fez para mirar-se, mas ele, espelho, devolve-lhe a pergunta: "Quem sou?" - mistério vivido como equívoco, infeliz de ser a imagem que o define: o olho não vê o olho.


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