domingo, março 04, 2012

Por punição, a recompensa

A Marcos Pompéia
 
Se a notícia de grilhões em ouro encantou e entreteve nos derradeiros séculos, a circunstância de terem por fim evidente a coibição não os distingue tanto de seus similares em metais mais resistentes, menos nobres, ou dos confinamentos em geral. A rigor, os princípios legais de Lugar Nenhum(1) são análogos aos que conhecemos, e apenas - talvez - mais esmaecidos, atenuados - diga-se assim - por uma compreensão maior da inutilidade e da vergonha dos atos punitivos para a sociedade que os pratica: inutilidade, por não prevenirem recidivas; vergonha, por indicarem a permanência de motivos para que crimes se cometam. Tacitamente concebemos a sociedade ideal como aquela que logra inibir infrações, não por perpétua vigilância, mas por não ensejá-las com atos consentidos. E desse viés o infrator se apresentaria qual dedo em riste para as condições impeditivas de sua natural atuação no meio, e o seu delito como exercício próprio da justiça, por assim dizer. Na comunidade ideal a contravenção é questão médica.

Não há propriamente médicos entre os Nhenhenhém. O curandeiro é presença figurativa, assim como o chefe. Mantém-nos lá para não se distinguirem demasiado dos vizinhos, dos quais conservam cauta distância: a recíproca é verdadeira, mas são evitados, além de, igualmente, por cautela, por reverência. No mais, todos sabem safar-se das mazelas comuns e a ordem imperturbável da tribo não carece de quem medeie dissensões ou remedeie suas - por vezes - dramáticas consequências, pois inexistentes. Cumprem todos com o que lhes cabe, sem distinção de sexo ou idade, como se cada qual soubesse desde sempre do que estará incumbido. Digo 'desde sempre' por não ter atinado com o modo de dividirem as tarefas, visto serem também obstinadamente econômicos com a fala. A língua, aliás, não lhes parece instituição das mais importantes, donde o nome que lhes dão - e aceito com dignidade - sugerir pilhéria. Afirmar ou negar lhes basta, em particular ao tratar com estrangeiros; entre si, raro é trocarem palavra. Entretanto não são sisudos; sorriem pouco, é verdade, mas conservam bom humor, sempre atarefados sem darem mostra de aborrecimento ou cansaço com o que fazem.

Crianças parecem aprender por imitação; nunca sequer lhes apontam para onde se dirigirem. Em geral imiscuem jogos e brincadeiras nas tarefaz que aprendem, envolvendo inclusive os adultos. São muito acarinhadas e recebem constante atenção. Não se fica inerte entre os Nhenhenhém: ao quinto dia de chegada fui cativado por sua determinação e, de pequenas tarefas auxiliares, uma semana à frente já cumpria uma rotina. Refeições nem sempre são coletivas, salvo a noturna, que tem caráter de festim, mas frugal. Usam da bebida só até lhes soltar um pouco a língua, quando então, além de alguma conversa, cantam e contam histórias. Esporadicamente louvam ou agradecem aos deuses, isto por estarem certos de não serem estes loucos ou tolos para perseguirem ou prejudicarem por motivos vãos as únicas criaturas no mundo conscientes de eles existirem. Creem ser inata a atitude religiosa: para ela os teriam criado, sendo homenagem bastante ao Criador o estarem vivos. Assim, jamais maldizem a divindade ou sequer dela reclamam, pois para tanto nunca encontram motivos.

É de imaginar e compreender que, assumindo aqui o papel do Arauto de Disparates(2), eu ficasse tentado a contrastar com esse meu antecessor chamando esta terra e sua gente de O Bom Lugar(3) ou, ainda, O Melhor Lugar. Ao cabo de quase um ano entre eles, não havia observado sequer uma expressão, alteração da voz e mesmo atitude que me remetessem a manifestações usuais de desagravo, aborrecimento, desaprovação. Mas isto somente até presenciar comportamento exclusivo e de difícil detecção, dado entre os Nhenhenhém ser frequente a troca de gentilezas: jamais se carrega fardo sozinho, há sempre alguém para nos esfregar as costas no banho e de bom gosto servem um ao outro durante as ceias. A exclusividade da circunstância não estava nas atitudes que a compunham, mas no quanto se repetiam e um tanto na ordem em que se davam - é possível, também, que na expressividade de algum gesto, o que não notei. Só depois de testemunhá-la meia dúzia de vezes, dei-me conta de ser o correlato do que entre nós se chama 'processo judicial'. Um pouco decepcionado, tive de admitir minha ingenuidade e a impossibilidade de convivência sem regras, lei de que os Nhenhenhém não seriam exceção. Fiquei igualmente apreensivo com o tratamento tácito dado a seu 'código legal', receoso de havê-lo infringido alguma vez, mas fui tranquilizado ao saber que ignoram a noção de 'perdoar', ou melhor, têm-na por sinônimo de 'esquecer' ou 'não perceber'; que a ignorância mesma é "esquecível" (ou "não merece ser percebida"), pois só se ignora o que é de somenos importância; e que somente ao 'descaso', ou a quem o comete, é devida a 'atenção'.

A importância secundária que, parece, atribuem os Nhenhenhém à linguagem não a torna instrumento menos sofisticado. Ao contrário: combinada às ações que a acompanham, ganha significados precisos cuja versão para idiomas como o nosso é grande estorvo. Dizem, por exemplo, ser possível perceber sem dar atenção, pois dar atenção é sinônimo estrito de cuidar, preservar. Detalhe: as gentilezas que reciprocamente distribuem nada têm que ver com a 'atenção', assim como a entendemos, sendo antes atitudes incontornáveis, necessárias, naturais da condição gregária. Compreendem mal a presença de conflilto em sociedade, estando em paz mesmo com os estrangeiros (entre os quais os vizinhos), aos quais se sentem associados ao mero contato. Em consequência, ninguém lhes faz guerra, o que me confirmou um visitante de outra tribo com a narrativa de um raro incidente de caça, que ouviu do avô: um Nhenhenhém fora morto por flechar o animal também na mira de um vizinho, que ele não viu. Já preparada para a guerra, a tribo do assassino, que desconhecia os Nhenhenhém (pois o traslado de aldeias para o pouso da terra de cultivo eventualmente possibilita encontros inéditos), foi surpreendida pelo cortejo de oferendas noite adentro e nos dias seguintes. Por uma semana ou mais foram poupados de trabalhar, de banhar-se e mesmo de comer por conta própria até que, tomados de vergonha, imploraram por 'perdão', no que foram prontamente atendidos.

O relato serviu para aclarar aquilo que eu já presenciara tantas vezes sem me dar conta do que fosse. Sem motivo aparente alguém se tornava alvo seguido de 'atenções' progressivamente maiores: muitos ou todos o serviam às refeições, ofereciam-se para carregá-lo à menor intenção sua de deslocamento, era banhado e à volta de sua rede acumulavam-se presentes. O comportamento tinha duração imprevisível, mas podia ser interrompido após repetidas recusas do favorecido. Tratava-se, como disse, do 'processo judicial'; e, como o nosso, compreendia etapas diversas. A primeira delas, a da acusação, cujo início nunca detectei, evidentemente, visto a amabilidade ser moeda corrente entre os Nhenhenhém: imagino que se configure com gestos sutis, pequenas variações da norma. A melhor resposta que obtive depois de indagar a respeito foi a de que a consciência do descaso (ou da infração) é em primeiro lugar do autor, o qual, por isso, concorda em ser servido. É natural, é seu direito inato recusar os favores. Caso isto se dê, tem lugar a segunda fase, a da defesa, mera sucessão de recusas às ofertas e que termina quando um dos lados deixa de insistir, encerrando-se o processo ou continuando-o na fase seguinte, final, correspondente ao cumprimento da sentença, que é sempre única, a exclusiva aceitação dos presentes, variando somente quanto à duração e cuja interrupção, igualmente, cabe com exclusividade ao sentenciado. Dignas de nota são as condições em que tudo ocorre, em princípio indistinguíveis das normais, ao condenado sendo permitido praticamente tudo, desde que obediente ao protocolo de sua pena, que nada tem de excepcional, visto ser sua a iniciativa de interrompê-la a qualquer momento - ou quando ele e todos entendem ser oportuno, ao que parece.

Se algo entendi dos meandros do tema, faço o esboço a seguir :

1) Por que não falam dos seus princípios legais: primeiro, por os entenderem como evidentes, inatos; depois, porque, sendo na verdade um só, quando enunciado quebra-se em uns poucos, o que obriga ordená-los, o que induz á hierarquia, a qual é fonte do engano.

2) O descaso é o escândalo: o indivíduo sabe que infringe a norma, não depois do ato (o que, no caso, constituiria ignorância - merecendo, portanto, não mais do que o 'esquecimento', o 'não-percebimento'); sabe que a infringe antes do ato infrator (quando se decide a - ou se permite - praticá-lo) e, principalmente, enquanto o comete. É evidente, a infração só é percebida pelos demais depois de ocorrida, assim dando início ao procedimento legal descrito e cuja primeira função é investigar se de fato a houve.

3) Quanto a em que consiste a falta, como observei, nunca tive oportunidade de presenciar o cometimento de alguma nem de ouvir sua descrição para arriscar dizer seja o que for. Então busquei na razão o que a circunstância omitiu, e ainda assim é indiretamente que o menciono:

     a) A completa ausência de ofensas recíprocas entre os Nhenhenhém induz a pensar que em meio aos seus princípios está esse, atribuído aos judeus, mas que é provável os preceder: 'fazer ao outro apenas o que se permite fazer a si mesmo'.

     b) Entretanto o exame cuidadoso do princípio revela um problema: se é o masoquista quem o observa, por exemplo, será fonte de constantes desavenças. O processo judicial descrito aqui sugere que os Nhenhenhém estão a par disso: cada parte se dispõe a interrompê-lo a qualquer momento, tendo por critério do 'jogo', ao que tudo indica, a tolerância da outra parte. Assim, observam uma forma corrigida do princípio e a têm por inata: 'jamais exceder a tolerância alheia'.

    c) O novo preceito justifica a conduta amável dos Nhenhenhém, ou seja, veta a possibilidade de conflitos, já que o observam à letra. Mas se não há ofensa recíproca, se não se excede a tolerância do outro, o que puniriam com as oferendas? A solução do impasse se apresenta somente quando é posta em evidência personagem quase desaparecida em meio às solicitações daquela que de hábito protagoniza as considerações legais: o 'eu', esse 'objeto' da lei, quem tem de observá-la, o coadjuvante do 'outro', o 'sujeito' dela, que o acusa de infringi-la. À exceção do matar-se, por que o punimos acaso falhe em realizar, do 'eu' cobramos tacitamente toda sorte de sacrifícios a cuja submissão se associa sua honra (esse nome de pompa para a vaidade), restando-lhe, além de entregar-se aos suplícios, a vergonha de fugir ou, excedida sua tolerância, o suicídio mesmo. Os casos extremos do herói e do santo, únicos a nos merecer a admirada consternação, impedem-nos de notar os demais, os dos obreiros, dos funcionários, das mães, dos médicos, dos professores e enfiada sem fim de indivíduos onde é certo estarmos você, leitor, e eu: supliciados menores, esperados, quase invisíveis. Os Nhenhenhém os percebem. Por isso, ao preceito 'jamais exceder a tolerância alheia'  teriam acrescentado: '...nem a  própria'.

Notas:

1 - A expressão indica que o autor refere desde a primeira frase o clássico de More.

2 - Raphael Hytholdaeus.

3 - Num comentário à obra, More admite mesmo a expressão ("a place of felicitie") como ainda mais adequada para qualificar o país imaginário do que a usada no título.

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