sexta-feira, março 02, 2012

Relata o visitante

... creio ter sido por volta da décima visita: tive a ligeira impressão de ser a mesma de sempre a coleção de papéis que deparava sobre a mesa, mas não me dei inteiramente conta. Ainda retornaria cerca de outra dezena de vezes antes de ter a suspeita por hipótese a ser investigada: tudo já estava - sempre estivera - como ali se dispunha e seriam então os meus olhos, alterado o estado do espírito em face do maravilhoso, a vê-los assim diferentes, renovados a cada excursão, a produzir a ilusão de variedade, do novo. Hoje tenho quase por certa a incômoda idéia de estarem abandonados desde que os escreveram e então me rio das inúteis preocupações com demorar-me ali ou com apagar os indícios de minha passagem, com sequer tocar o alimento, sempre fresco e como a me esperar, e com a pressa de partir tão-logo voltava a mim no intervalo de substituir diante dos olhos uma página pela seguinte, com o receio de ser pilhado ao sair e com a firme e reiterada decisão de aguardar, escondido num desvão da mesa, o retorno do autor. Além desse espaço monumental, dos escritos maravilhosos e do silêncio, talvez ninguém, senão eu e talvez algum animal errante, tenha-se esgueirado pelas ranhuras do piso ou misturado às sombras sem fim das portas quase inamovíveis, não fossem as dobradiças responsivas ao meu toque insignificante como se por milagre. Por momentos ignorei os papéis na busca de peças de vestimenta que me confirmassem as dimensões do dono, já intuídas do mobilliário; pois nada, além da cama, igualmente rústica e dum armário inviolável, bem como da mesa e da cadeira - que me dava acesso, embora penoso, aos escritos - traíam a possibilidade de o lugar ser habitado. Observei depois as frutas - o cacho tinha o tanto de bagos maduros que noutra excursão - e o queijo - macio e odoroso como d'antes: sempre ali, como a me esperarem ou a qualquer outro visitante, indiferentes e intencionais. Nem tanto ao receio de me revelar devo a reserva em tocá-los, mas ao temor de me afogar em seus sumos. Voltei assim aos papéis, umas visitas mais tarde, e tentei decifrar os seus traços: era evidente haver letras, que de tão próximo dos olhos não figuravam palavra, mas como que caminhos que trilhei vez ou outra na esperança de lhes achar o sentido. Foi somente quando logrei pendurar-me na lamparina presa à parede que pude confirmar tratar-se de notas margeando desenhos, alguns traçados com precisão de instrumentos da geometria. Sim, eram planos, mas numa língua que desconhecia, ou melhor, numa língua cujos termos não conseguia vislumbrar em conjunto, dado estarem ainda muito perto. Semanas de estudo me forneceram o meio seguro de atingir o teto: penderia do cordão quase esquecido à volta duma viga no telhado. Só assim entenderia que, se estavam num vernáculo, este era o do mundo, no qual em inesperada harmonia vocábulos de línguas diversas se alternavam em seus respectivos alfabetos e ideogramas: além do provável tamanho, era também pantagruélico o poliglotismo e - constataria mais tarde - a polimatia do autor. Quanto ao que os ilustrava, em traçado leonardiano, uma paisagem e como se a anatomia de um pássaro. As visitas seguintes dediquei a adaptar o dispositivo de cordas e varas para do meu ponto de observação poder mover as folhas sem sair de onde estava, deslilzando-as para o chão, onde permaneceriam intocadas até quando as vi da última vez. Ocorreu-me também de copiá-las, guardadas as limitações do meu engenho, e submetê-las a algum sábio disposto a decifrá-las. Era constante o pentagrama, no qual se inscreviam um homem, mas também um símio, um lobo, o jaguar, e em outras abundavam as esferas - sobre as quais havia mapas, um deles, do planeta - e que por vezes se agrupavam em sistemas como o solar, além de nuvens espessas de pontos sugerindo objetos ignorados. Paisagens figuravam por vezes seccionadas, exibindo as entranhas em que, num ciclo de setas sem princípio nem fim, a seiva das árvores fluía para os veios dum vulcão cujas cinzas pareciam animar o vento que se esgueirava pelos escuros dum céu estrelado refletido no mar à guisa de peixes e equinodermos, e assim por diante, para sempre. Sequencias inteiras não eram ilustradas e ali as sentenças pareciam fazer seus sentidos usuais; umas emulando frases célebres, que reconhecia quando era familiar o idioma. Muitas estavam em sânscrito, outras em chinês e hebraico - penosas de reproduzir - e só ao fim de várias centenas de folhas desfrutei do conforto de reproduzir o alfabeto latino, embora pouco ou nada entendesse do que escrevia. Na esperança de encontrar algo compreensível, pus abaixo páginas e páginas seguidas para somente assim observar que parecia interminável a modesta pilha, que apresentava, a despeito do quanto a desbastara, espessura semelhante, se não igual, à de sempre. Já as demais, espalhadas pelo soalho, davam a impressão de serem mais numerosas do que as que ainda se empilhavam, ou melhor: davam a impressão de serem em maior número do que a soma de todas quando ainda sobre a mesa. Retornam os desenhos num certo momento, os textos reduzidos: havia agora exércitos, hordas de miseráveis e seus reis ou generais, não sei precisar, pois vestiam-se do inusitado, ás vezes parecendo nus ou cobrindo-se demais; vi máquinas volantes e bólidos incandescentes rasgando os céus em direção a lagartos imensos, o apagar de sóis e um amanhecer igual aos outros em todo lugar; e uma mansarda, representada dum ângulo aéreo, familiar: a cama, o móvel, a cadeira e a mesa onde papéis se empilham e se espalham pelo chão.

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